segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Triunfar!

Agora que acabei o último trabalho de 2012, agora que olho pela janela e vejo o sol a pôr-se por trás do Palácio da Cultura e da Ciência, agora que posso descomprimir e apontar agulhas para a passagem do ano, também posso passar em revista o ano que hoje finda e avaliar se foi bom ou não.

Foi mais ou menos.


  • Vivi o meu segundo Europeu de Futebol depois do 2004 português. Varsóvia e o reservado e pouco emotivo povo polaco não resistiram ao carnaval do futebol e foram contagiados pelo vírus da bola, a Cidade Capital apresentou a maior Fan Zone da Europa, como era de esperar tive a visita de munines que quiseram acompanhar a seleção e demos um saltinho à Ucrânia para marcarmos presença na estréia da Equipa das Quinas na competição, vivendo aventuras nesses dias que foram aqui contadas e relatadas;
  • Atingi o patamar mais elevado possível em algumas das minhas atividades profissionais. Professor na Universidade de Varsóvia, uma das mais conceituadas do país e da Europa, um marco de qualidade das minhas competências e uma linha de inigualável prestígio no meu currículo, um filho de Faro (curiosamente não o único) a elevar o nome da cidade natal. DJ no Platinium, provavelmente a discoteca mais concorrida e reputada de Varsóvia, ponto de encontro da nata da cidade e onde só os nomes maiores da terra têm lugar. Aquela cabina foi minha, aquele chão foi meu, aquele povo todo entregou-se totalmente a mim e tal há-de acontecer novamente. Durante o set lembrei-me muitas vezes da malta do Largo da Caganita e da Escola do Carmo, eles estavam todos ali comigo na cabina, eles também tocavam comigo;
  • Assisto com mágoa ao envelhecimento da família, apesar de andarem rijos e lúcidos. Nota-se o peso dos anos nas expressões faciais, no discurso, na ambição, mais saudosistas e menos efetivos. Reflexo do conta-quilómetros mas também da situação atual em Portugal que contamina todas as esferas da sociedade, uma pena mas também uma inevitabilidade;
  • O regresso à casa de partida no campo das relações pessoais, as coisas complicaram-se nos últimos meses e vejo-me de novo no mercado de transferências com a trouxa às costas. Não vai ser pior do que em 2008 quando me separei da Iza, nessa altura não tinha trabalho, não falava a língua e quase não conhecia ninguém, mas é sempre um passo atrás no plano e no projeto. Ainda assim, sinto-me com mais ilusão que nunca, com grande vontade de arregaçar as mangas, ir para a luta e arranhar-me todo até conseguir alcançar aquilo a que sempre me propus desde o longínquo dia 8 de outubro de 2007 quando cruzei a fronteira germano-polaca: Triunfar.
Amigo leitor, que 2013 seja o ano do seu... digo, do nosso triunfo. E que os nossos inimigos se conservem bem de saúde para poderem assistir ao show.

Saúde e sorte.

domingo, 30 de dezembro de 2012

A carpa – símbolo gastronómico do Natal polaco (e não só)

Carpa Na ceia de Natal polaca aparecem coisas que não lembram ao diabo! Comparando com a mesa de consoada portuguesa, os polacos destacam-se por apresentarem mais variedade - uma dúzia de pratos diferentes segundo a tradição -  sendo que nenhum é de carne e a maioria é composta por diferentes tipos de peixe. A ceia natalícia neste país não é uma oportunidade para a refeição lauta e bem regada tão característica na nossa terra porque, tradicionalmente, não se colocam bebidas alcoólicas na mesa. Outra situação na qual a consoada é diferente é na consensualidade que os pratos reúnem, em Portugal ninguém discute a bacalhauzada com batatinha, couve e grão, às vezes um ovo para enricar o banquete, porque é uma especialidade ao gosto de todo o português, o fiel amigo é tradicional do Natal mas acompanha-nos durante todo o calendário como todo o (nosso) prazer. No caso polaco não é bem assim, o peixe típico de Natal – a carpa – também gera consenso mas negativo: Ninguém gosta de carpa.

A carpa é um peixe originário da Ásia e foi introduzido no rio Danúbio há coisa de 2000 anos, não se sabe (ou não importa para aqui saber) qual foi o trajeto do teleósteo até chegar frita à mesa dos polacos (e dos alemães, checos e eslovacos) mas sabe-se que é um peixe que não goza de boa reputação neste país. É considerado um peixe sujo e essa fama advém de viver em rios e lagos, muitos deles poluídos, ganhando assim um gosto a lodo que só consegue ser neutralizado depois de muita depuração. Por isso é comum comprar-se carpas dois ou três dias antes da véspera de Natal e conservá-las numa tina de água doce para que a sua carne perca progressivamente o sabor a lama, o que nem sempre é conseguido e que explica a aversão que muitos polacos têm  pelo seu prato emblemático de Natal, amplificada pela notória falta de jeito que os polacos têm para lidar com espinhas de peixe. A consoada deste ano passei-a por cá e testemunhei a diferença que há entre uma carpa asseadinha e outra que não se lavou porCarpa frita dentro o suficiente, o cheiro e o travo a lama no primeiro caso mesmo que eu comesse sem reclamar a posta que me serviram, e a carne limpinha se bem que sem sabor distinto – a carpa é servida frita com batatas assadas mas sem azeite, vinagre, alhinho ou limão. Em ambos os casos foi elogiada a minha perícia no manejo das espinhas e no aproveitamento que fiz da posta, os meus colegas comensais deixavam mais de metade do peixe no prato, bem porque não sabiam separar as espinhas como também porque não se queriam dar a tanto trabalho para comer aquela coisa ruim.

Por isso fiquei a pensar no porquê dos polacos terem elegido para símbolo da consoada uma refeição de que quase ninguém gosta e que torna a ocasião num fastio em vez de ser um prazer. A Karolina contou-me que tal se deve ao impedimento que a Igreja Católica decreta ao consumo de carne na quadra natalícia obrigando os polacos a pensar em alternativas, sendo o peixe a mais direta. Como o mar não está próximo de todos os polacos, estes voltaram-se para os seus muitos rios e lagos onde há peixe com fartura, deitaram os anzóis ao leito e começaram a desbastar cardumes de carpas dado que este é o peixe que se deixa apanhar com mais facilidade. É uma explicação aceitável mas insuficiente para que eu comece a ter gosto em ver uma posta de carne frita na minha mesa de consoada. Mas podia ser beeeeeem pior, a apenas um par de horas, na vizinha República Checa o jantar típico de Natal é sopa de cabeça e vísceras de carpa ;)

O ganso assado no forno no almoço de Natal? Ah, isso é outra conversa…

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

ECAS


TAFKAP - The Artist Formerly Known As Prince


Amigo leitor, antes de começar a ler o artigo deixe-me que lhe diga que este vai ser uma daquelas prosas dramáticas sobre o inverno polaco, tema sobre o qual já dissertei noutras ocasiões mas que me é sempre chegado, particularmente quando caem as primeiras neves. Portanto considere-se avisado, se não quiser continuar a ler mude de canal que eu compreendo, ficamos amigos à mesma, só que eu tenho mesmo de escrever sobre estas coisas para as tirar dos ombros. Se soubesse o que nós passamos nesta terra cada vez que muda a estação compreenderia todo este barafustar.

Ontem à tardinha ameaçou, vi que o asfalto estava esbranquiçado e que as rachas do pavimento tinham sido preenchidas por uma pasta branca que dava a sensação de frio. Não fiquei muito contente com o panorama porque tinha jogo de futebol à noite e imaginei um arranque a diesel, uma carga de trabalho até alcançar o nível e agilidade para jogar como deve ser. Pensei também na quantidade de café que tinha em casa, se era altura de reabastecer o armário porque com a temperatura a descer há um série de molezas que tomam conta do corpo, tiram a vontade e esta só consegue ser reposta com a colaboração de abastadas chávenas de café com leite, sem açúcar para o estímulo ser ainda maior. Entretanto a noite caiu e saí de casa para o meu jogo, o termómetro do carro registava -0,5º C e eu pensava se ia jogar de luvas ou não. Acabei por deixar as luvas no saco, ignorei o briol, cerrei os dentes e saltei para a arena, corri que nem um cavalo para não sentir frio e a estratégia deu resultado - não dei pelo frio e ganhámos 3-0 com dois golos meus, um de pé esquerdo e outro de calcanhar (peço desculpa pela cagança mas tinha de dizer isto!). Voltei para casa e inchado e arcado e dormi o sono dos justos.

Hoje já não houve ameaças veladas nem pré-avisos, a neve cascou e ainda casca severamente na Cidade Capital. As pessoas esperam pelos autocarros enfaixadas em cachecóis e gorros atafulhadas em grossos blusões ou volumosos sobretudos, sai-lhes um ar duro da boca e dos narizes rosados que lhes dá um aspeto ainda mais triste e enfermo. Sinto a neve misturar-se com o gel e começo a teorizar sobre os gorros e couros cabeludos dos polacos, se eles usam o gorro porque têm o cabelo ralo e isso faz-lhes frio na gorra ou se cortam o cabelo rente para poderem usar gorro e não terem frio na gorra, se eles não usam gel porque já sabem que o cabelo fica empastado quando neva ou se não usam nada porque o cabelo deles é tão fraquinho que qualquer leva de espuma da Garnier arranca-lhes madeixas inteiras.


No meio desses pensamentos passei o primeiro compromisso do dia e sentei-me para o pequeno-almoço, li as frescas e fiquei sabendo que Alvalade mete água mesmo sem o Sporting jogar. Aliás,  o ECAS - Equipa Conhecida Anteriormente por Sporting. É esta a designação que escolhi para aquele bando de moços que jogam à bola com camisolas verdes e brancas às riscas porque aquilo não tem nada a ver com Sporting, não fazem esforço, não se dedicam, a devoção é inteiramente da massa adepta e de Glória só me lembro da mulherzinha que vendia abacates ao pé da casa da minha avó. O emblema também não tem relação nenhuma com a realidade, não merecem ter um leão rampante ao peito mas antes uma onça velha e magra, caquética, que erra pelos relvados portugueses e europeus numa vexatória demonstração de decadência.

Arrumei o computador e peguei no copo do café, sentam-se duas adolescentes na minha mesa, sacam dos telemóveis e comentam fotografias do facebook, comentam os penteados das colegas, comentam os comentários. Eu assopro o café para o arrefecer e olho à minha volta, centenas de pessoas a caminho dos seus trabalhos. Passa um rapaz com um cachecol da Legia, joga hoje à noite em Wrocław na casa do campeão polaco para defender uma vantagem de sete pontos sobre o segundo, começo a pensar se não farei melhor em ver o jogo da Legia do que o do ECAS mas logo penso que não, que isso seria como trocar a esposa que está doente e bichada por uma amante mais jovem e vibrante. "Mas trata-se disso mesmo, qualquer homem faria o mesmo!", penso eu procurando desculpas para a facada no matrimónio, para justificar a preferência por uma mulher mais nova de pele mais clara e luzidia, cheia de vida e jovialidade, fogosa na cama e louca na pista de dança. Para quê seguir com este saco de ossos a que alguém chama de equipa, este feixe de misérias nas palavras de Guerra Junqueiro, um esfregão futebolístico que me envergonha quando saímos de braço dado? As raparigas riem alto, guincham como dobradiças de portas velhas, não respeitam a minha angústia, não percebem a minha dor, não vêem o meu calvário.

Lá fora a neve segue impiedosa, pune Varsóvia pelo verão radioso que viveu este ano. Tal como eu vou ser punido mais logo à noite pela má-sorte de ter nascido lagarto.



ps - Acredite, caro leitor, que eu queria escrever sobre o inverno polaco quando me sentei ao computador, mas entretanto outros pensamentos me assaltaram e deu nisto que se lê. Desculpe lá...

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Kuba

Plac Konstytucji

O Kuba tem 30 anos e diretor de vendas duma firma de construção civil. Típico pai de família, duas filhas, mora numa casa nos subúrbios, é adepto da Legia (meteu-se comigo, ele estava com um grupo de malta, no restaurante onde eu jantava com os munines depois do Legia-Sporting) e às vezes manda mensagens a cancelar o nosso encontro matinal das sextas porque se atascou em vodca na noite anterior. É um porreiraço.

Já nos conhecemos há dois anos, ele ajudou-nos no processo de compra de casa ao estabelecer (estabelecer e não negociar) os termos e condições do negócio, conseguiu-me a garagem por metade do preço, dilatou prazos, reduziu preços, fez trinta por uma linha a nosso favor sem esperar nada em troca. Receberia mais tarde uma garrafa de Antiqua, uma aguardente velhíssima do acervo do meu tio, como paga pelos favores. Ficou satisfeito e eu contente por ter compensado que mereceu, assim se fazem amizades e se consolida o respeito.

A este meu amigo faz confusão a questão do "português na Polónia", como é que um ser mediterrânico, principalmente do Algarve, se dá tão bem com os ares severos da Europa Central a pontos de não pensar num regresso breve para Portugal. Concluiu ele em amistosa provocação que se tal acontece é porque eu estou a ficar mais polaco que português, já são cinco anos a dizer "cześć", noiva polaca e etc., todo o processo de integração a decorrer em velocidade de cruzeiro e por isso as particularidades da civilização polaca já não me afetavam tanto, era mais fácil para mim e que por isso podia servir como consultor de portugueses interessados em emigrar para a Polónia. Recusei a teoria dele, não me estou a tornar polaco apesar de já ter assimilado muito da cultura e da mentalidade deste povo, sou e serei sempre português com os prós e contras que isso traz, a falta de pontualidade, a postura relaxada e tranquila ante os problemas e obstáculos que a vida cria, o "thinking out of the box" tipicamente tuga que nos permite ter uma palavra no dicionário que não tem tradução em mais nenhuma língua do mundo (desenrascar), o sangue quente que nos faz debater um tema de forma inflamada sem que estejamos a discutir embora pareça.Depois surpreendi-o quando lhe disse que provavelmente não aconselhava ninguém a vir para a Polónia. Ele abriu os olhos, encostou-se atrás na cadeira e depois fez um sorriso patife: "Já percebi, queres as raparigas todas para ti". Eu vi onde ele quis chegar, não era essa a minha intenção e passei a explicar.

O barbacã da Cidade Velha

Se bem que Portugal em 2011 tenha registado o sétimo pior nível de crescimento económico mundial segundo o World Bank, a Polónia também não patenteia a mesma pujança do início de década, o emprego (em Varsóvia) é cada vez mais difícil de encontrar, o investimento tem-se reduzido porque as empresas têm de salvar as suas operações dos países de origem - a título de exemplo, durante anos foi o Millennium polaco que financiou a casa-mãe portuguesa e por isso fala-se na que o banco português está a ponderar a retirada do mercado polaco - além de que o polaco da geração mais recente é mão-de-obra altissimamente habilitada (conheço pessoas, jovens adultos, com duplos e até triplos mestrados, qual é o português com estas qualificações?) que trabalha 10 ou 11 horas por dia sem grandes reclamações e que procura constantemente valorizar-se através de formações profissionais, pós-graduações ao fim de semana, cursos de línguas estrangeiras (sei de alunos meus que estudam coreano, alguns árabe, outros aprendem japonês para não falar de idiomas europeus). O português que se quiser radicar neste país tem de ser bem melhor do que estes jovens lobos que buscam trabalho no seu país, que querem trabalhar na sua terra e que procuram desenvolver a sua nação através do seu conhecimento. Vai ter se superar uma concorrência tremenda que consiste em pessoas que sabem por dentro e por fora o funcionamento do sistema e das instituições, percebem a mentalidade e sabem como reagir mediante determinadas situações ou estímulos que sucedem pela primeira vez ao português comum, situações essas que podem ser extremamente desgastantes quando sucessivas, contínuas e permanentes.

A Polónia não é apenas cerveja baratucha, gajas boas e festas do outro mundo. Uma coisa é vir para cá de Erasmus e furar tantas miúdas quanto possível sabendo de antemão que se regressa para o retângulo atlântico ao fim de seis meses, outra é ter a noção que amanhã vamos ter de caminhar em 10 cm de neve no passeio até chegar ao autocarro abafado e apertado, sair de casa no escuro e voltar para casa no escuro, repetir a mesma música pelo menos cinco meses por ano - tanto quanto dura o inverno - e passar mais de metade do ano com temperaturas abaixo de zero. Também não nenhuma pêra doce negociar com pessoas desconfiadas à partida e com um enorme sentido de dúvida em relação ao produto e à pessoa que vem de fora, enfrentar repartições públicas com funcionários que não fazem o mínimo esforço para facilitar a tarefa do imigrante que ainda não domina o idioma na perfeição, negociar contratos de água, luz, televisão e telemóvel, requerer um fundo de pensões, ir à oficina com o carro, todo este leque de pequeninas coisas que multiplicadas pelos sete dias da semana ou trinta do mês podem levar alguém ao desespero.

Então, é verdade que a Polónia apresenta um crescimento interessante na casa dos 4% (comparados com os -1.6% de Portugal) mas não se tome o índice de crescimento económico como um aferidor do nível de vida que se pode ter num país. A Polónia não é nenhum El Dorado, talvez tenha sido há 5 ou 10 anos mas agora já é difícil penetrar nos mercados porque a concorrência é cada vez maior, o emprego nas grandes cidades começa a escassear e só o grande capital é que tem facilidade em se estabelecer. Para quem quiser vir para este país e triunfar aconselho uma carteira bem agasalhada, paciência de e muito jogo de cintura porque se vamos basear as nossas decisões em números é preferível irmos todos para a Mongólia que lá estão a crescer a 17%.

No final, o Kuba cruzou os braços e disse: "Nunca tinha pensado nisso, pelo menos não como tu dizes..." Bebeu mais um golo de café e recomeçou:

"O Ljuboja está a jogar muito, não está?"

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Retalhos da vida de um Algarvio - Parte 19


21:00 Acabei o dia de trabalho.

Varsóvia I

O alarme tocou às 6:10, podia ter tocado às 6:00 mas eu regulo-o para que tenha mais 10 minutos de sono do que o esperado, é uma pequena subversão ao sistema, os gajos pensam que eu acordo às seis da matina mas eu é que sei, fico mais dez minutos na cama. Uma palermice, mas é a minha palermice e são mais dez minutinhos de cama e dez minutos mais na cama, para mim e para o lado materno da minha família, é um tesouro. Fosse como fosse, às 7:30 já estava a alargar as virilhas para apanhar o entalado 109, o primeiro autocarro do dia, gente a deitar por fora, hálitos grossos de café e névoas amarelas de alfazemas diferentes a decorar o interior. Há quem feche os olhos e ainda tente voltar atrás na dormência, passar pelas brasas em pé, um exagero de sono, eu já me preparo para a escala, mudança de autocarro para o E-2 e vou mentalmente revendo o plano da aula. Troco de transporte, mais avagado de espaço e de lugares, já dá para sentar e puxar da leitura que o Duarte emprestou, aqui e ali interrompido por um incomodativo estridor mais agudo proveniente dos fones de um jovem que ouve Guns n'Roses logo de manhãzinha, poluição auditiva para arrancar o dia. Blargh!

O Centro recebe-me com "bons dias" soalheiros, céu limpo de outono mas sem aquela sensação de inverno iminente, as pessoas vestem roupa de meia-estação e a neblina fofa não chega para arrefecer o ânimo, estudantes precipitam-se para os portões da Universidade mergulhados em capuzes, iPods e tabaco, um taxista menos paciente faz gincanas para ganhar uns décimos de segundo, um rapaz de calças de bombazina (o que eu detestava quando a minha mãe mas comprava, até tive umas cor de vinho tinto que eram mais feias do que um filho bater no pai) distribui panfletos de casas de fotocópias, parece-me tudo mecânico, como em piloto automático. Mas do portão da UW para dentro é uma paz sepulcral, os cochichos das árvores sossegam a pressa e reduzem as pulsações, pontos louros destacam-se do verde deslocando-se para a esquerda e para a direita, um colírio.

Senta-se a turma, tudo arredado na última fila. Eu também fui aluno de última fila e conheço as manhas, por isso ordeno um passo em frente, que não há problema porque tenho as vacinas em dia. A turma obedece, respeitam o mestre talvez porque este os respeite e se saiba dar ao respeito, coisa que custa a muitos. Que abram o livro na página tal...

Batem à porta, é a D. Anna, provavelmente a funcionária mais simpática da faculdade. Traz más notícias, o corpo dum colaborador que havia desaparecido há dias foi encontrado nas margens do Vístula, terá saltado para a morte sem que ninguém se apercebesse dos tormentos que o desassossegavam, ninguém deve julgar aquele que se mata porque terminar a vida requer muita coragem. Cai um manto lúgubre na aula que prossegue como pode, o espetáculo não pode parar.

O almoço, costume que me esforço para manter regular, é constituído por plantas porque faço um dia vegetariano por semana, uma desculpa moral para os banhos de colesterol que tomo, para limpar a tubagem, para expiar a carne, para me enganar ao cabo e ao resto. Meio quilo de forragem e um sumo de cenoura garganta abaixo e recomecemos o baile que isto não dá para grandes recreios.

Varsóvia 2

A tardinha surge apressada e já vestida de noite, traz aragens escuras à cintura e uma cuia de chuvinha miúda que era escusada e que faz arrepiar a espinha. Dura pouco esse tempo e logo se despe de claridade para abraçar a Cidade Capital num fresco lençol de breu, mais chuva e um elétrico antigo para o transporte para casa. No caminho passo por parques cor de musgo e por um cemitério onde piscam as velas multicores de parentes dos falecidos, uma calma parda que me dá medo, o elétrico segue ruidoso e sacolejante, mais um cruzamento, mais um passageiro que sai, uma loura adolescente que me mira com ar interrogativo, eu olho distraído pela janela, mais uma paragem e a minha é a penúltima. Dois McDonald's em 800m, casos do capitalismo desregrado e sem critério, mais valia que fosse um Burger King no lugar dum deles e o meu ponto que chega.

Salto do elétrico e ponho-me ao fogão, não há horas para jantar porque o jantar vem sempre a horas. Depois da sopa aquecida ainda me sento ao PC para dar um toque nas fotocópias do dia seguinte que como a maioria dos meus dias de trabalho vai das 8:00 às 20:00. Lá fora a chuva pára, pelo menos regou-me o jardim e é menos isso que tenho de fazer no sábado.

21:00 Acabei o dia de trabalho. Amanhã há mais... do mesmo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Para o meu grande amor


Querido Sporting,

Espero que esta carta te encontre bem e digo isto sem ironias porque há muito tempo que não te vejo, desde que me zanguei contigo e deixei de te prestar atenção. Tens sido mau para mim, tão injustamente mau que me desiludi, desenganei-me e de tão zangado que estava abandonei-te. Por isso te escrevo, para te pedir desculpas.

Não sei o que hei-de fazer contigo, sinceramente não sei, se ponho uma pedra definitiva sobre a nossa relação e às vezes é o que me dá vontade depois das partes que me tens andado a fazer, ou se te dou mais uma oportunidade como aqueles pais de filhos toxicodependentes que lhe desculpam todas as avarias "porque ele não é má pessoa". Tal como esse filho drogado, eu sei que tu também não és má pessoa, bem pelo contrário, és uma pessoa excelsa e magistral, nobre e distinta, tens princípios e valores que partilho inteiramente, possuis um carisma tal que te torna irresistível logo quando te conhecemos, és garboso e excelente, tens tudo o que se procura em alguém como tu. Mas tornaste-te numa coisa que não entendo, numa vulgaridade, tornaste-te normal, comum, incógnito. Parece que largaste tudo sem avisar para fazeres uma road-trip de mochila às costas, terás lido o Patagonia Express? Não me disseste para onde ias nem quando voltavas, eu esperei por ti, fiel como um cão, todos os jogos eu compareci - na medida das minhas possibilidades, percebes? - na esperança que aparecesses, olhei sempre no horizonte para ouvir aquele teu tropel assustador que fazes quando és senhor de ti e que amedronta os teus oponentes... mas nunca vieste e tantas vezes não vieste que me fui embora. Por isso te escrevo, para te pedir desculpas.

Conhecemo-nos há quase quarenta anos e desde sempre estive contigo, dezoito anos de provações mas estoicos prosseguimos a caminhada, uma que só tu sabias quando ia acabar mas eu nunca reduzi a minha fé em ti. Explodimos de gozo em lágrimas e gargalhadas em maio de 2000, lembras-te?, que fomos os dois (e mais uns milhares) para a Baixa de Faro e eu andava aos saltos na capota do meu carro, histérico, com a camisola do Schmeichel? E dois anos depois, quando os teus dirigentes tiveram uma das poucas boas ideias do teu passado recente e foram buscar o Jardel para metralhar a golos outro título? Porra, Sporting! O que é que te aconteceu entretanto? Como foste capaz de perder essa embalagem, esse alento? Como foste capaz de te tornares num balão esvaziado, frouxo e mole? Como é que tu queres que eu continue a gostar de ti se tu só dás vexames e fazes-me passar vergonhas? Até o filho do Litos, esse então veio mesmo do teu ventre, diz que quer mudar de clube, já viste ao ponto que chegaste? Mas enfim, por isso te escrevo, para te pedir desculpas.

Gostava de ter a força e a coragem para te deixar e ser feliz com outro mas não tenho. Tu és o meu combustível, a minha heroína, o meu oxigénio. Se tu jogas à noite eu de manhã já penso em ti, fico tenso e tremo, não me concentro em mais nada porque é o dia em que jogas, nada mais interessa, nada mais importa, nada mais existe. Tenho uma dor tão grande de te ver como estás que nem fazes ideia, cada jogo teu é uma navalhada no coração, é um dó ver aquelas onze almas passarinharem o teu emblema, a raiva que me dá ver a falta de respeito que eles têm por ti. Culpa tua, deixa-me que te diga, porque também não tens sabido dar-te ao respeito e é aqui que eu quero chegar. Respeita-te, Sporting! Levanta-te, Leão!

Peço-te desculpa porque eu não devia de me portar como me portei. Que se lixe, não aguento a tua ausência! Voltei. Volta tu também, regressa depressa. Escrevo-te de lágrimas nos olhos e peço-te, imploro que me perdoes porque mesmo que me trates da maneira como me tratas eu vou continuar a amar-te, mesmo que me humilhes e ignores eu vou continuar a amar-te, mesmo que outros com razão partam e te deixem eu vou continuar a amar-te ainda mais fiel, ainda mais leal, ainda mais teu. Dar-te-ei tudo o que me pedires, entregar-me-ei plenamente porque é este o amor que te tenho: absoluto e incondicional, unilateral se assim quiseres que seja. Não consigo, tentei mas não consigo existir sem ti. Quando sofreres sofrerei contigo, quando te ferires limparei as tuas feridas, quando te atingirem saltarei para a arena para te defender, caminharei de mão dada contigo por onde te levarem, ouvirei os dichotes e os gozos daqueles que estão agora melhor na vida, são parvos porque não sabem nem sonham o quão belo e ilustre é ser sportinguista. Se este é o preço a pagar por tal devoção e tal amor estou disposto a pagá-lo até ao fim da vida e mesmo então, no fim da linha e quando eu fechar os olhos, eles sem vida hão-de te ver.

És o meu perpétuo, primeiro e único grande amor. Sporting, tu és a minha vida e eu sem ti não sei viver.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

No cabeleireiro

Na minha terra só o Sr. Manuel tem autorização para me mexer no cabelo. Sportinguista penitente, possuidor duma longa e ancestral barba cor de chocolate preto, o Sr. Manuel deu-lhe com a navalha quando conquistámos o título de 2000, o do Schmeichel e Beto Acosta, provavelmente como promessa. Muito leão fez coisas mirabolantes por essa altura, eu e a minha canalha verde do Liceu (Paul, Giga, Cartaxo, Vítor) combinámos jogar-nos todos à doca quando isso acontecesse mas a cena levou tanto tempo que muitos de nós já eram casados e pais de filhos quando o Marquês festejou e a estória ficou guardada numa gaveta. O Sr. Manuel não teve comichões e mesmo ante a estranheza da esposa raspou as bochechas exibindo agora apenas um bigode que não sei se também já não estará prometido, visito-o sempre que vou a Faro e entre as lamúrias do costume e a atualização da má-língua (em Faro há um eixo onde se sabe e se discute a vida de toda a gente: Quiosque Farense-Farmácia Alexandre-Salão Lisboa) vamos conversando de toda a espécie de temas e no fim da tosquia entro com os 9 paus do costume, não sei eu se é preço amigo para um camarada sofredor ou se é mesmo preço de tabela mas há anos que pago o mesmo.

Numa capital europeia não se podem esperar cabeleireiros (porque se lhe chamo barbeiro o Sr. Manuel marafa-se comigo) a 9 euros, ou seja, a 36 zlotys. Talvez haja em zonas mais recônditas da cidade mas não devem ser de confiança e eu prefiro coisas mais centrais que por esse motivo são mais caros (15 heróis), havia um ucraniano gay em Natolin que até me trabalhava bem cabelo mas como agora moro a 20km dele - meia hora de carro - não se justifica a perda de tempo, hoje procurei um local mais perto do trabalho, encontrei um salão com boa pinta e sentei-me. Veio um rapaz que me abancou em frente a um espelho para que eu explicasse como queria a guedelha arranjada e depois tratou de me encaminhar para o lavador de cabeças (terá aquilo outro nome? Pia?), fez o que tinha de fazer e quando nos dirigíamos para a sua cadeira o Mateusz amavelmente propôs-me uma chávena de chá ou de café. Recusei porque não tinha vontade de beber estimulantes quando não tinha necessidade mas ele não se ficou e insistiu com água com ou sem gás. Educadamente expliquei que estava bem e que não queria beber nada, aí ele parou e ficou a olhar para mim: "O senhor não quer beber nada?"

Compreendo que se trata duma estratégia para fazer os clientes sentirem-se confortáveis, para que eles voltem. É uma simpatia, uma fineza que se faz para tratar o convidado com distinção, mas precisamos de aceitar o chá para sermos aceites no clube? Eu não costumo beber café fora do pequeno-almoço e mesmo esse é do instantâneo e com mais de metade da chávena com leite, chá muito menos porque nunca foi hábito na minha família, água bebo quando tenho sede, será que por não ser um bebedor de café ou de chá que vou ter problemas no cabeleireiro doravante?

Imaginei os comentários das raparigas da manicure: "Olha, lá vem o português. O gajo até é giro e fala bem polaco mas que pena que não bebe chá senão..." ou a senhora que controla o armário dos casacos: "Bom, bom, bom... O tipo que não bebe nada. Deve ser judeu para não querer gastar a parede gástrica, parvalhão!" Devo confessar que me senti um pouco discriminado por ser um não-bebedor-de-nada e tenho receio de lá voltar, bem que queria porque o Mateusz tem jeito para a coisa e pôs-me o chapéu de palha em grande nível, mas ser olhado como um leproso só porque não lhes aceito as bebidas não me encanta particularmente.

Ou vou ter de ir ao Largo da Palmeira cada vez que quiser cortar o cabelo?

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Uma pausa para reiniciar o sistema

Amigo leitor,
Peço desculpa pelo hiato nas publicações mas nas últimas semanas surgiram situações pessoais e profissionais que me exigiram total atenção e concentração, pelo facto fiquei com menos tempo para me dedicar à escrita e ao relato do que é a vida dum algarvio na Polónia. Espero retomar o ritmo habitual tão rápido quanto possível sendo que isso talvez demore ainda um mesinho. Até lá, deixo-vos com um abraço e uma citação de um dos meus heróis contemporâneos - Prof. Agostinho da Silva:

"Não faço planos para a vida para não atrapalhar os planos que a vida tem para mim"

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Está-se bem(owo)

UrsynówForam quatro anos, quatro gloriosos anos passados em Ursynów, freguesia que testemunhou os meus sucessos e fracassos, as quantas vezes tombei e reergui-me. Quatro anos que não foram pêra doce, quatro anos de constantes provações, de testes, de desafios, quatro anos em que Varsóvia me pôs à prova, que me colocou no fio da navalha para ver se eu aguentava o balanço. Sempre lhe respondi com um sorriso largo, tão largo quanto podia mesmo que as costas sangrassem das chibatadas que ela me dava, mesmo que os músculos se rompessem da força que ela me obrigava a fazer porque sabia que se Varsóvia me tirava com uma mão também me havia de dar com outra.

Poucos sabem (e poucos saberão) o que eu gemi até chegar a Natolin, um período em que ponderei o regresso a Portugal. Sem ter espaço que pudesse chamar meu, sem trabalho que pudesse financiar a procura, foram três meses a arranhar para esgravatar uns cobres até para comer. Chegar a Natolin, ter arrendado aquele T1 foi como um sinal de que as coisas podiam mudar, que iam mudar. A pequena conquista que significou assinar contrato com os senhorios (jóias de pessoas) foi uma enorme vitória e deu-me um empurrão para seguir na senda da promessa que fiz quando saí de Faro: Não regressar sem ter triunfado.

Ser poder dizer que já triunfei, longe disso, reconheço que já conquistei algumas metas volantes e a mudança para Bemowo é mais uma dessas metas. O caminho não tem sido fácil porque não o é, muitos por cá passaram mas não aguentaram a pedalada da Polónia e voltaram desiludidos ou partiram para outras paragens. Eu vou-me aguentando nos trancos, cada vez mais ambientado, adaptado e integrado, era assim que eu queria e há-de continuar a ser se tudo correr bem.

E se não correr? Tem de ser! E o que tem de ser tem muita força.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Na Polónia sê Polaco - 13

Doner Kebab Há dias deu-me uma fome maluca, uma vontade incontrolável de comer um franguinho assado no carvão como se pode encontrar em tantas churrasqueiras portuguesas, o molho gordo de alho e limão pincelado na pele do frango que fica no fundo da embalagem de alumínio e que serve para arrumar com um pão de meio-quilo. Dei comigo na fila do KFC a lamentar a minha sorte, a de não ter um lugar desses em Varsóvia onde pudesse encomendar o frango, as batatas fritas e o arroz. No entanto há uma especialidade que se encontra em praticamente todas as ruas da Cidade Capital, o kebab.

Não é culinária polaca nem nada que se pareça, o kebab é uma espetada de carne que se assa num forno ou na brasa. No entanto a especialidade mais consumida na Polónia é o döner kebab, carne de frango ou de borrego (ou cordeiro) empilhada num espeto que gira à frente de uma grelha a gás. O kebab é extremamente popular na Polónia e é o registo de fast-food mais procurado pelos polacos até mais do que as casas de hambúrgueres e de saladas, sendo que é particularmente visitado depois de uma noite de copos ou de danças fortes. Eu próprio já me pus na fila para o kebab às tantas da manhã, o sol a raiar e eu cheio de vapores, para consolar o estômago antes de voltar para casa. É o ideal, carne com fartura, saborosa e vem com umas verduras para ajudar a assimilar. Desaconselhável como refeição sistemática mas perfeito em dias de festa ou naquelas corridas a que o quotidiano às vezes nos obriga.

Conheço dois irmãos que se dedicam à preparação e comércio de carnes para restaurantes de kebab. Turcos, claro, fanáticos do Beşiktaş, oConcorrência Aykut e o Mihtat disseram-me que fornecem mais de cem vendedores de kebab só em Varsóvia, um trabalho que os obriga a pegarem muito cedo (5:00h) para que os seus clientes tenham as carnes mais tenras e melhor preparadas da cidade. O negócio é levado muito a sério até porque há competições entre os restaurantes com júris entendidos na matéria, prémios são outorgados aos vencedores que os exibem orgulhosos nas paredes dos seus espaços comerciais. Aqui perto tenho um estabelecimento que ganhou o prémio em 2009, realmente fazem um kebab que é uma especialidade, e que visito com alguma regularidade à falta do tal franguinho bem regado.

Sempre que pego no cartucho de carne ponho-me a pensar no que dirá o meu intestino ao digerir estas mistelas, ele que sempre foi habituado a sabores mais meiguinhos. Faz parte, não há um franguinho da Guia mas há um kebab de Varsóvia. Ou isso… ou fome.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Vida nova

De Ursynów a Bemowo Por força do mencionado aqui e na sequência do que foi contado aqui, nova etapa da minha vida na Polónia se concretiza. Uma mudança importante como todas as que vivi neste país até agora, talvez mais importante porque vai permitir o meu registro a termo indeterminado como habitante na Polónia. É que até agora eu não tinha direitos cívicos por não estar registrado, os meus senhorios - tanto no tempo da Iza como depois em Natolin - nunca quiseram aferir a minha residência por não quererem pagar impostos e por terem receio dorua Górczewska meldunek, o direito de preferência sobre a superfície de que eu beneficiaria e que lhes dificultaria a vida caso eles se quisessem ver livres de mim. Agora tudo será diferente para melhor, vou mudar-me para a casa da Ewa, porque o crédito está em nome dela, onde finalmente posso obter a confirmação de que resido nesta terra.

Vendo a coisa à distância concluo que o meu caso tem aspetos divertidos. Comecei por ter um registro provisório em casa dos pais daObras no interior da casa Iza, minha ex-namorada, que servia para eu pedir o número de identificação fiscal por intermédio de uma entidade empregadora.  Comecei a pagar impostos sobre os meus rendimentos como qualquer contribuinte honesto mas tinha o ónus de trabalhar em Varsóvia e estar registado em Tychy que fica 320 km a sul. Toda a correspondência fiscal, declarações de rendimentos e por aí fora eram para lá direcionados, facto que me causava grandes transtornos agravados pela nossa separação que a obrigava e à família a terem de conviver com o correio do namorado defunto já que eu tinha ficado em Varsóvia e ela tinha entretanto voltado para a Silésia. Expirado esse registo e perante as negas do meu senhorio restou-me trabalhar num regime curioso, fiscalmente reconhecido como residente em Varsóvia na rua tal e tal mas sem direitos cívicos. Ou seja, capaz para pagar impostos e segurança social mas inapto para possuir bens devido à falta de registo de residência.

Bemowo É aqui em Bemowo, um West End Warsaw, que está a primeira casa mais próxima daquilo que se pode chamar de minha. A vizinhança é da melhor, um Tesco 24/7 a cem passos de casa, terminais de autocarro e elétrico ao atravessar a rua, bombas de gasolina num raio de 200m, farmácias, bancos, mercearias e clínicas com fartura, parques e piscinas a 5 minutos a pé, um centro comercial enorme a 700m, as comodidades duma grande cidade à mão de semear. Foram quatro anos em Natolin, no sul de Varsóvia, mas em breve o subtítulo do blogue terá de ser atualizado.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cada cavadela, uma bomba

… e quando o dia de trabalho corria morno e manso, os sapadores!

- Pedimos desculpa mas temos de evacuar o edifício. Foi descoberta uma bomba do tempo da II Guerra Mundial que ainda está ativa e vamos desativá-la, por essa razão os senhores e as senhoras têm de sair.

Lembrou-me outro caso aqui já reportado. É o terceiro engenho do tipo detetado nos últimos meses na sequência das obras da segunda linha do metropolitano de Varsóvia. Em fevereiro no cruzamento das ruas Marszałkowska e Świętokrzyska (esta última onde eu trabalho) foi encontrada uma bomba de tonelada e meia ainda por explodir, facto que obrigou à evacuação de 400 pessoas. Ainda neste mês e ainda na rua Marszałkowska, uma das mais importantes artérias de Varsóvia ora encerrada devido às obras do metro, os trabalhadores depararam-se com outro dispositivo do tipo pesando 300kg o que fez com que 20 pessoas tivessem de abandonar os seus lares e empregos.

Ele há coisas nesta terra que parecem tiradas dum filme…

Trabalhos de recuperação da bomba

update: Entretanto a bomba já foi levada para instalações das Forças Armadas polacas onde foi submetida a uma explosão controlada. Segundo apurei, o engenho teria perto de duas toneladas de peso e meio metro de diâmetro. Devido ao facto de no local onde foi encontrado funcionarem importantes agências e escritórios (o Banco da Polónia, a televisão estatal TVP, hotéis, restaurantes e outros serviços) foram evacuadas cerca de 3000 pessoas. Espera-se que a vida de Varsóvia volte hoje ao habitual, ao sossego, se alguma vez isso for possível.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Onde tu andas, Miguel…

… então eu fui ao supermercado (onde é que eu já ouvi isto?), desta vez para comprar uma máquina de cortar cabelo entre outras coisas. Chego a casa, abro a caixa para pôr a máquina a carregar e cai-me um papel no chão.

Certificado de não sei o quê

Porra, que esta cena assusta…

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Saudáveis indícios que o serviço ao cliente na Polónia está a mudar, ou O poder irresistível dum sorriso algarvio, ou Há coisas levadas da breca!

As compras de meio da semana. Bananas, pão, charcutarias, sumos, detergente para a roupa… e uma garrafa de vodca de menta, o Miguel Gião sabe do que eu estou a falar ;) Na caixa, puxo do cartão de cliente para acumular mais pontos e mostro as senhas dos produtos em promoção que comprei para ganhar ainda mais pontos, porque nestas coisas eu sou muito picuinhas e à pala disso já enfeirei um aspirador último modelo por €15.00. Diz-me a senhora:

- Não posso aceitar as suas senhas.

Eu estranhei e perguntei:

- Porquê?

- Porque o senhor comprou vodca. Quando se compra vodca não se pode beneficiar das senhas de pontos. Vodca, tabaco… esses produtos.

Eu ia-me desqueixando, já há muito tempo que não ouvia uma polonada destas. Voltei-me para a senhora com o sorriso mais simpático possível e sussurei-lhe como se lhe propusesse uma matrafisca:

- Então e se eu não comprar a vodca agora e comprar logo a seguir, já posso ficar com os pontos?

A senhora pega nas senhas e murmura um:

- Ó senhor…

Eu vejo-a a ceder e enterro a bandarilha ainda mais fundo, mais sorridente, mais simpático ainda, o teclado todo arreganhado.

- É que, percebe? Não me parece muito esperto que eu não possa ficar com os pontos se comprar uma garrafa de vodca. Se é assim então eu pago agora as minhas compras e entro de novo para comprar a garrafa, não acha que é estranho?

Ela começou a passar as senhas dos pontos no leitor de códigos de barras enquanto rezava qualquer coisa que não percebi. Por fim, voltou-se para mim e decidiu:

- Pronto, eu contei-lhe os pontos. Agora esconda essa garrafa no seu saco.

Aceitei, claro, ficando contente por mais uma vez o belo sorriso algarvio desemperrar impasses mas ao mesmo tempo intrigado por ter de sair do supermercado com uma garrafa de vodca escondida entre as bananas e os limões como se fosse gamada. Ainda por cima estando paga.

Enfim. A Polónia.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Rescaldo dumas miniférias agradáveis mas tristonhas

Faro, vista aérea Portugal está cada vez mais diferente daquilo que era, quase que digo que está cada vez menos português. O produto que melhor se vendia, a simpatia e hospitalidade portuguesa, está inquinada pela crise e pelos criseiros, os fazedores da crise. Os portugueses estão menos alegres, menos abertos, menos expansivos, vejo-os carregando fardos de apreensão e preocupação, o pessoal que antigamente se juntava para jantar hoje junta-se só para petiscar, não fazem dois fins de semana de borga seguidos, reina a apatia salpicada por uns pontuais abraços de satisfação por ver o amigo emigrante, um par de brindes à saúde do presente e à memória dos que já partiram mas tudo coisas com moderação e em doses previamente medidas.

Entre as novidades sabidas e contadas ressalvo os divórcios e separações, casos chatos entre pessoas que se deram tão bem ao ponto de fazerem meninos e que depois deixaram fenecer o encanto. Não faço críticas até porque não tenho experiência na matéria mas parece-me estranho que se tente aperfeiçoar uma relação com um filho, decisão irreversível para o bem e para o mal, e que depois este sirva de arma de arremesso sem ter culpa nenhuma das palermices que os adultos fizeram ou ainda fazem. Um filho é uma coisa de responsabilidade, não é um telemóvel ou um par de calças que se enfeiramos quando vamos de compras terapêuticas e que se pode descartar quando já não gostamos. Eu não tenho filhos porque nunca me senti preparado e porque não quis a fuga para a frente, “vamos fazer um menino porque isso nos vai aproximar”. É o mesmo que o João Pinto do FC Porto dizia nas suas indiscritíveis diarreias verbais “estar à beira do precipício e dar um passo em frente”. Ou isso ou reflexo da falta de paciência das pessoas em resultado da falta de motivação, da falta de perspetivas, da falta de futuro que se sente em Portugal. Uma pena, uma dor na alma ver amigos meus a atirarem com o barro à parede porque não se sentem com capacidade para aguentar o que escolheram.

E outra situação que me deixou deveras preocupado – assaz preocupado, diria o Tojó – é a profusão de casas de penhor e de compra de ouro que há em Faro. É impressionante o número destes estabelecimentos que abriram na capital algarvia no espaço de um ano, fenómeno que talvez passe ao lado dos farenses mas que salta à vista daquele que conhece a sua terra mesmo que a visite três ou quatro vezes por ano. É um sinal de que as pessoas estão mesmo nas últimas e vêem-se na contingência de ter de vender o seu ouro, aquele que sempre foi o melhor investimento de sempre. Porque se há tantas casas destas é porque há procura e se há gente que procura penhorar os seus bens é porque já não têm meios de fazer frente às despesas. É importante perceber isto, as pessoas estão a trocar os seus bens por dinheiro, é de loucos! Qualquer dia vendem orgãos do seu próprio corpo ou trocam um filho por senhas de gasolina e supermercado. Onde é que isto vai parar?!

Varsóvia, a avenida KEN Fui a Faro este verão com a ideia de explicar à minha família um plano que tenho… quer dizer, tinha, para criar um negócio que me possibilitasse passar mais tempo em Faro ou dividir a minha vida entre Faro e Varsóvia. Pelo que vejo e pelo que me foi aconselhado, ou pegar no meu plano e trazê-lo para Varsóvia mesmo que eu passe metade do ano abaixo de 0ºC porque nem tão cedo Faro, o Algarve e Portugal se endireita enquanto os seus governantes continuarem a fazer as piratarias que têm feito, depenando os portugueses enquanto eles vivem à tripa forra. Assim não se admirem que os “Jerónimos Martins” da vida batam a asa, Portugal está bom é para masoquistas ou românticos, mas como eu não gosto de levar porrada nem posso pagar as contas com versos…

sábado, 11 de agosto de 2012

Um problema

Tenho um problema, um grande problema, para o qual não encontro solução e não hei-de encontrar. É um problema crónico, daqueles que vou ter e sofrer com ele até ao fim da vida. É um problema tipo psoríase, não mata, não contagia mas também não se cura, não vou ter outro remédio senão aturá-lo e gramar com as questões que ele me coloca quase todos os dias.

O problema é grande mas fácil de diagnosticar, os sinais são claros e os sintomas evidentes. Fico inquieto, o pensamento foge e distrai-se entre o lá e o cá. Nada está bem, ou então tudo está bem mas em outro lado ainda está melhor, a impertinência e a ansiedade crescem, anda tudo fora de sítio.

Ria Formosa O meu problema é a saudade, saudades de lá quando estou cá e saudades de cá. É uma situação lixada, começar a criar saudades no mesmo momento em que se matam outras, uma guerra sem quartel nem fim à vista porque o termo duma batalha implica o rebentar de novo conflito. Chegar a Faro é regressar ao princípio do mundo, às coisas da infância e da adolescência, à família e à pandilha do Liceu, da bola, da praia, dos computadores, do Largo da Caganita, do Sporting, da peitada. Um prazer tremendo ver esta maltinha, sentar-me à mesa com eles e desfazer caracoladas e canecas, saber das últimas (que infelizmente são cada vez mais negras) e partilhar umas gargalhadas, de ir ao S. Luís assistir ao regresso paulatino do meu Farense aos momentos maiores do futebol nacional, abancar na espanada do Zé Maria para uma imperial fresquinha depois de três horas de peitada já com os olhos a arder do suor como foi naImperial e tremoços quinta-feira com o Cartaxinho e o Penny (a maior remontada de sempre, de 8-14 para 16-14 e já sem força nas canetas!). Mas já sinto a comichão da falta do meu sofá, dos jantares na Nowy Świat, das noites doidas de vadiagem em clubes de shots de vodca por cima das mesas de mistura, das pernas torneadas e branquinhas como se fossem envoltas numa camada de leite em pó peneirado pela Criação, do corre-corre da semana de trabalho a planificar horários e aulas ou a preparar um novo set para apresentar ao manager de uma discoteca.

Não é fácil viver em permanente saudade, sentir a perda de uma coisa quando ganhamos outra. Foi a vida que escolhi, perder a praia para ganhar os braços da minha mulher. Mas enquanto Varsóvia vem e não vem eu vou ali à frente dar um mergulho, venho já.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Crónicas de Lviv - 7

Rzeszów Amarrotados da estopada diurna, satisfeitos por termos deixado aquele país de tantas aventuras mirabolantes, regressámos a outra realidade mais consentânea com os padrões a que os munines estão habituados, mais humana e mais agradável. A Polónia parece ter gente mais reservada e seca mas não tem o mesmo cinzentismo opaco que a Ucrânia que conhecemos e a sociedade é organizada de forma muito mais proativa que no seu vizinho de leste. Parecia que se sentia na pele o ar mais leve quando se saíu da Ucrânia, mais fluido, mais transparente. Não demorámos meia hora depois da fronteira para comemorarmos o retorno à civilização com um xixi e uma cigarrada, gestos de alívio e satisfação mesmo que faltassem mais de 5 horas até Cracóvia. Não importava, o importante era que o pior já tinha passado.

Tomámos então a estrada para Rzeszów para largar o tal amigo cuja namorada tinha uma camisola da Alemanha. Sendo que eles viajaram no carro do Daniel, não sei qual era o clima deles mas lembrei-me das palavras do Fava quando os apanhámos no aeroporto e cruzei os dedosRzeszów II para que a tivessem metido no porta-bagagens. O GPS apontava para uma estrada secundária não muito larga mas vazia àquelas horas (5:30 dum domingo), enveredámos pelo caminho em boa velocidade, uma curva em linha reta à esquerda e... um bloqueio. Duas filas de carros parados que se prolongava por vários metros bloqueavam ambas as faixas da estrada, impossível passar, um coisa estúpida e sem razão de ser. O Giga desconfiou logo do trajeto, “o GPS está avariado, devíamos ter ido pelo mesmo caminho da ida”, eu saí do carro e fui perguntar as razões daquele bloqueio, aparentemente ilegal, responderam-me com um encolher de ombros e só um homem mais solícito se dispôs a orientar uma passagem entre os carros, ação que não colheu grande entusiasmo entre os presentes. Um dos homens estacionados insurgiu-se contra o comportamento do restante pelotão e defendeu-me, “vocês não podem fazer isto, as pessoas têm de passar, têm o direito de passar” mas pregou para os peixes como Santo António, poucos o ouviram e os que o ouviram até o mandaram passear. Só se mexeram depois dele ter engrossado a voz, três motoristas mais sensíveis abriram um espacinho para que pudesse passar não sem que antes tivesse de passar por um campo de erva e lama, subisse uma ladeirazinha colocada, parecia, de propósito para acudir a situações do género. Soube entretanto que o ajuntamento de carros devia-se a uma feira de automóveis que abria às 7:00 e já todos se enfileiravam para conquistar a melhor posição no recinto. Tive de fazer um safari eslavo com o meu citadino, espremi o carro e passei por entre olhares de esguelha. Mais uma para o diário de bordo.

Cracóvia - Varsóvia Despejados os amigos no hotel para alívio do Fava, inconformado pela camisola da rapariga, tocaram-se os restantes 170km até Cracóvia, apenas (ou mais) três horas que já não consegui cumprir até ao fim. Derrotado e exausto cedi o volante ao Giga quando faltavam 60km, ele que também não estava muito fresco, corria-lhe um fio de baba quando encostei o carro, mas que tinha pelo menos fechado os olhos durante a viagem. Eu já não aguentava a pedalada, não quis arriscar e passei a pasta. Abri os olhos já na circular exterior da capital da Pequena Polónia, sinal que o Gegante tinha levado o barco a bom porto e que em breve  chegaríamos à pousada. Assim foi, o beliche essa manhã soube-me a nuvens, repousei umas saborosas cinco horas até me sentar de novo no carro para a viagem solitária de volta a Varsóvia.

Os munines continuaram a dormir, recuperando energias para a Estrada de Rzeszów para Cracóviaexigente  noite cracoviana e para o segundo jogo em Lviv que era já na quarta. Eu prossegui o meu caminho para Varsóvia onde me esperava a minha querida caminha e o lindo sorriso da Ewa, o bálsamo indicado e adequado para um corpo e uma alma tão desgastados como os meus. Mas claro, faria tudo de novo se pudesse! Não sei é se o meu carro achava tanta piada assim…

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Das pérolas a porcos

Cerveja de fim de tarde em Varsóvia, duas raparigas polacas e um rapaz português. Conversa entre elas:

- Não sei o que se passa com os homens deste país, andam todos abichanados. Vestem-se como gays, andam como gays, falam como gays e aqueles que não são gays são labregos. Que desgraça a minha.

Seguiram-se uns segundos de silêncio, logo a mesma rapariga, olhos azuis turquesa marejados de indignação, enfatiza:

- Eu quero ter sexo, eu preciso de ter relações sexuais, mas com quem? Desde março que não se passa nada, o que há de errado comigo?

O português leva a garrafa de cerveja à boca para evitar comentários demasiado sinceros. Ela volta-se para ele e diz:

- Tu sabes que eu gosto muito de ti, diz-me porque é que eu não consigo ter ninguém.

O português, na sua inevitável latinidade, rende-se, pousa a garrafa depois de ter engolido o que faltava de um trago, olha-a dentro daquele olho cor de fundo de piscina e anuncia:

- Linda, se passares uma semaninha no sítio de onde eu sou voltas para a tua terra sentada num balde de gelo com o andar igual ao Lucky Luke.

Dito isto levantou-se e foi ao bar pedir mais três fresquinhas antes que dissesse mais alguma coisa de que se pudesse vir a arrepender no futuro.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Crónicas de Lviv - 6

ukrnafta Consegui arrastar os jagunços para fora daquela cena de tragicomédia às 2:00, já me doía o braço dos subanos que o ucraniano me dava e tinha os ouvidos dormentes das perguntas da menina hiperativa de Lviv e ainda tinha umas centenas de quilómetros pela frente. Não estava cansado, estranhamente, sentia-me desperto e capaz de levar o carro mas confessei ao Dani, o outro condutor, que não me importava se parássemos numa bomba de gasolina para tomarmos um estimulante. Assim fizemos, já tínhamos localizado uma estação da Shell à entrada da cidade (porque a UkrNafta não inspirava muita confiança), ponto onde fomos abastecer carros e neurónios. O Dani grita: "Olha só para o preço do diesel!"

O gasóleo estava a €0.99 por litro, quase cinco vezes menos que em Portugal, quatro vezes menos que em Varsóvia (na Polónia os preços dos combustíveis não são cartelizados como em Portugal dando-se o caso de serem mais baixos em zonas onde o poder de compra dos polacos é mais reduzido, por exemplo, o preço da gasolina é mais alto em Varsóvia do que noutras cidades do país) e por isso decidimos atestar. Quando acabo a operação fixo o número da bomba, a importância e entro à procura do Red Bull da ordem, a estrica adicional para suportar melhor a viagem. Vejo latas de meio litro, dose cavalar, "nesta terra é tudo à bruta" pensei, mas ainda bem. Vou pagar, o funcionário pede-me 400 coroas das deles, eu vi que só tinha posto 250. Já estava a barraca armada.

O homem diz algo que eu não percebi, eu respondo "Ja, Mercedes" e repito a quantia em polaco. Ele diz que niet, niet e chama a colega que por sua vez abandona o cliente que estava a atender deixando-o em pé de guerra. Mais palavras em decibéis elevados e enervados, a mensagemdinheiro ucraniano sem passar e a mulher resolve assumir as rédeas da situação, o colega refugia-se atrás do balcão sacudindo a cabeça, faz-me lembrar o empregado do restaurante, a mulher pega em dois talões e aponta para eles e para as bombas, ralha em ucraniano apontando insistentemente para os talões e para as bombas e pergunta "rozumi?" Aí desorientei e expliquei tudo em polaco tim-tim-por-tim-tim e pareceu-me que estávamos a chegar a algum entendimento quando se ouve uma voz muito baixa, como se pronunciada debaixo de água "Um momento...". Era o segurança, falava português.

Um ucraniano em Lviv que fale português, isso é menos natural que o preto de cabeleira loura ou o branco de carapinha mas caiu do céu. Num português ferrugento mas bendito ele explicou que o rapaz tinha cobrado a bomba do Dani a mim e que o Dani tinha pago a minha conta, a solução era fácil, cada um pagava a gasosa do outro e acertávamos as contas um com o outro mais tarde. O Pimpão não perdeu hipótese de meter conversa com o senhor, perguntou-lhe tudo e ele lá foi respondendo que tinha trabalhado em Lisboa e Tomar, que tinha sido muito bem recebido pelos portugueses e que por isso torcia por Portugal no Europeu. Era um facto, os ucranianos confessaram-nos a sua predileção por Portugal muito em parte devido à hospitalidade com que recebemos os seus compatriotas durante a sua diáspora. Foi uma conversa bem disposta, alegre e necessária para arejar o ambiente, depois dos problemas solucionados ele conclui com uma expressão que eu já tinha ouvido na Polónia: "A cabeça trabalha", o Dani completa: "Mas não é sempre" Seguimos viagem.

Sair de Lviv foi um alívio para o automóvel, recuperámos a calma nas suspensões, calou-se a chiadeira e calaram-se os munines também, cansados da aventura, dos cânticos, da pressa das coisas. À noite aquelas aldeias onde meninos e velhotes nos saudavam e vitoriavam parecem desertas, de dentro das casas não se vê um fio de luz, das chaminés não sai um risquinho de fumo, nada indicia que as casas tenham gente e só se vê pernadas de árvores, sebes mal podadas, sinaisSinal medonho escritos em cirílico, uma paisagem sinistra que só consegue melhorar quando imagino o mesmo lugar no inverno, o anoitecer prematuro, o frio insuportável, a aspereza das pessoas e da gastronomia rural eslava. As mesmas terras passam por nós, os mesmos nomes estranhos, as mesmas placas ferrugentas e estragadas que exibem as marcas de um passado negligente e austero, como se tivesse sido teletransportado 20 anos atrás no tempo, os Lada agora descansando numa garagem feita de ramos de carvalho, as casas sem reboco e por fim as luzes do posto fronteiriço, a cancela da liberdade, a passagem para a civilização, o escape para o éden, a fuga atrasada por mais uma fila, mais um controle, mais uma série de burocracias, uma boa meia hora em plena madrugada ucraniana à espera do visto nos passaportes.

Fuma-se para matar o tempo, todos menos o Giga e o Rui. Cansados, os munines rendem-se ao aparelho das formalidades. Já não estamos habituados a isto, desde a ponte sobre o Guadiana, e temos de levar a coisa na desportiva. Olho para trás e vejo um raio de sol a levantar-se sobre a planície ucraniana, sobre a terra que tanto me preencheu o imaginário da adolescência. Onde eu estive, aquela terra onde conduzi era União Soviética há pouco mais de 20 anos. Era a terra de Dasaev, de Gorbachev, de Kasparov, nomes da minha infância que habitavam paragens tão longínquas que me pareciam irreais, que só existiam na televisão. Os soviéticos, os terríveis, os malvados, os déspotas. Caramba!, eu estive lá, na terra que já foi deles, na ex-URSS.

Fronteira de voltaOs guardas mandam avançar, eu julgo que ouço o marchar de botas militares na minha direção e por um segundo vejo o escudo da foice, do  martelo e da espiga por cima do corredor automóvel em vez do tryzub – o tridente amarelo em fundo azul. Impressão minha.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

1:00, toca a acordar que já é de dia

TrovoadaA noite cai e a temperatura não parece baixar, o ar continua húmido, pegajoso, lembra os entardeceres da República Dominicana aos quais só lhes falta o mar e as palmeiras. O resto existe, o calor e a sensação de que precisamos de outro banho cinco minutos depois de termos saído de debaixo do duche. Há um contraste incrível, uma diferença enorme entre a Polónia de inverno e a Polónia de verão. Do frio ártico que varre o país, das massas de ar polar que assolam a Europa Central e que nos fazem tiritar na rua, castigando-nos com violentos –20º ou –25º até ao calor abafado que obriga as pessoas a estufar debaixo de 30º ou até 35º, uma diferença de temperatura na casa dos 60 graus, coisa absurda. Os roupeiros têm de ser maiores para albergarem tanta roupa de inverno, de verão e de meia-estação que faz falta, casacos, sobretudos e blusões dividem a camarata com as t-shirts, camisolas e camisas mais frescas. O curioso é que, ao contrário do que se passa(va) na casa dos meus pais em Faro, não se pode tirar a roupa de inverno de lugar para colocar a de verão quando a estação muda porque não se sabe quando uma gabardina vai ser necessária em pleno julho ou um casaco mais forte vai fazer falta nos fins de tarde mais frescos de agosto. Temos de reservar um espaço imenso em casa para guardar toda a roupa, todos os sapatos e botas, todos os calções e gorros muitas vezes na mesma gaveta, uma tarefa interessante se tivermos em consideração a pequenez da maioria dos apartamentos de Varsóvia, pelos menos aqueles que pertencem aos meus amigos que por não nadarem em dinheiro têm de viver em áreas mais módicas.

Estas condições climatéricas são ideais para grandes trovoadas de verão, tempestades terríveis que assolam toda a Polónia sem deixarem nenhuma pedra por levantar. Há pessoas que não se importam com trovoadas, há mesmo que se ponha à janela para assistir ao espetáculo mas eu não sou desses, não gosto de trovoadas como já referi em artigos anteriores. Os entendidos dizem que as fobias tratam-se com a exposição contínua à fonte do medo, não queTrovoada em Ursynów eu tenha medo de trovoadas – prefiro chamar-lhe respeito. Acho que algo semelhante me está a acontecer visto que quando a tempestade de aproxima e quando a banda de trovões anuncia a sua chegada não me enervo tanto como antigamente. Quatro anos a conviver com estas situações já me dão algum calo e não me irrito tão facilmente. Mas há um problema que permanece e para o qual eu não hei-de ter remédio, é o horário que as malditas escolhem para aparecer, raramente durante o período de tempo que passo no trabalho, concentrado demais para ouvir e ver o que quer que seja, mas sempre alguns minutos depois da meia-noite, hora em que habitualmente toca a recolher na minha casa. Às vezes até chegam mais tarde, deixam que eu adormeça embalado pela brisa que sopra entre os ramos dos teixos que tenho em frente à varanda, a corrente fresquinha que passa de janela em janela e ajuda a cair no sono, mas depois entram ventanias vigorosas e repentinas que batem portas e vidros, explosões ensurdecedoras, clarões arrepiantes e olhinhos bem abertos porque não há quem consiga dormir com tanto barulho, tenho de me levantar para fechar as janelas porque batem nos caixilhos com tanta força que podem quebrar-se a qualquer momento. Acho que a Natureza faz de propósito, uma sinfonia de trovões, uma revolução que eclode quando a cidade está mais pacífica, mais tranquila, mais silenciosa. Parece que é para lembrar do sítio onde estamos, Varsóvia, onde nada surge fácil, tudo é obtido a duras penas, nada é ganho sem suarmos as estopinhas. Segunda-feira é por hábito o dia mais complicado da semana, pois eis uma trovoada épica durante a madrugada para começarmos bem a jornada, de bom espírito e motivados para o trabalho.

Nem quando os dias parecem bonitos Varsóvia nos faz a vida fácil.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Varsóvia e a nostalgia depois do Euro2012

Começou assim, a maior Fan Zone do Euro2012.

Fan Zone de Varsóvia

Por dentro era assim, 120000 m² de restaurantes, bares, bancadas e de muito espaço para ver a bola nos diversos ecrans disponíveis.

Fan Zone - interior

A festa acontecia tanto de dia como de noite, a rua Nowy Świat era o palco preferencial de todas as comemorações.

Nowy Swiat de noite

Nos dias anteriores aos quartos-de-final em Varsóvia, o Portugal – Rep. Checa, até encontrámos patrícios estacionados em pleno centro da Cidade Capital. À patrão!

Fan Zone com furgoneta portuguesa

Até os edifícios vizinhos se associaram ao evento. Havia festa, cor, alegria.

Prédios decorados

Agora que o torneio acabou, vê-se isto.

Desmantelamento da Fan Zone

E as intermináveis obras da segunda linha do metropolitano que hão-de durar até ao ano 2063.

Cruzamento Swietokrzyska - Marszalkowska

O problema de viver um certame destes por dentro é a sensação de vazio que se sente depois do circo partir, já é a minha segunda vez (2004 e 2012) e nunca fica mais fácil…q;,(

ps – John e Dani, juntos não perdemos nenhum!