sábado, 7 de março de 2015

Postais da Polónia - 21

GAZ-21 A minha avó era o cúmulo da bondade, era incapaz de se zangar comigo ou de me levantar a mão. Aliás, ela não levantava a mão nem a um mosquito. Recordo-me que fiquei uma noite a dormir em casa dela e passei-a em branco porque tinha entrado um grilo dentro de casa (casa térrea na Rua do Alportel), o inseto levou a noite inteira a estridular, por certo contente com o ambiente acolhedor da casa da minha avó, mas não me deixou dormir e a cada rumor que ela sentia do quarto onde eu estava logo avisava: ‘Não mates o bichinho!’ E não consegui adormecer por causa da benevolência da minha avó para com um grilo. Se eu me portava mal o mais que ela fazia era dizer que ia ‘chamar a Côca’, um ser mítico de forma desconhecida que assustava os meninos rebeldes. No caso da minha avó, a Côca era representada por ela própria munida duma caraça, 148 centímetros de mulher com uma máscara (de Branca de Neve, acho) era o suficiente para me inspirar tal terror que ainda hoje me lembro de fugir corredor fora ao vê-la. A minha tia tinha a mão mais leve, às vezes recorria a socas para me pôr nos eixos mas a sua versão mitológica do bicho-papão era ‘O Velho Do Saco’, um dito senhor que passeava pelas ruas de Faro com um saco onde metia os meninos mal-comportados e que depois os levava para longe sem que eles nunca mais vissem a mãe. Eu não acreditava muito nessa léria porque já conhecia a Côca, era uma criatura real, ao passo que O Velho Do Saco não me parecia verosímil… até um belo dia aparecer um mendigo à porta da casa da minha tia, um velhote de barbas que carregava um grande saco de plástico às costas cuja visão me fez molhar os calções de medo. Teria 4 ou 5 anos e compreendi que tanto a Côca e O Velho Do Saco existiam e a qualquer momento podiam aparecer e castigar-me. Serve este preâmbulo para vos falar do que assustava os meninos polacos quando eles se portavam mal – a Czarna Wołga.

Tratava-se duma limusina negra, concretamente um GAZ-21 de fabrico russo com elementos brancos como cortinas, frisos ou pneus, que percorria as ruas das cidades e vilas polacas raptando os meninos. Nas décadas de 60 e 70, conforme a versão contada, a Czarna Wołga era conduzida por padres ou freiras, judeus, vampiros, agentes da SB que era a agência central polaca de segurança ou até mesmo pessoas com ligações a seitas satânicas. Também consoante as histórias, os meninos raptados eram levados para a Alemanha para se lhes colherem o sangue e tratarem meninos ricos alemães (ou ocidentais no geral ou até mesmo árabes) que sofriam de leucemia, ou eram vítimas de traficantes de órgãos ligados ao KGB. Esta última associação pode estar relacionada com o facto de que os automóveis do modelo em questão eram maioritariamente utilizados pelo aparelho do governo da União Soviética ou por membros oficiais do PCUS GAZ-24 (Partido Comunista da União Soviética) sendo que alguns elementos da Milicja, a polícia do Estado na Polónia, também tinham acesso. Sabendo que os polacos nunca morreram de amores pelos vizinhos soviéticos nem pelos ditames da PRL, foi fácil criar uma relação obscura entre os sinistros automóveis que eram um emblema do regime opressor e os funcionários que os conduziam e que eram mandados pelos mauzões de Moscovo.

A lenda urbana renasceu no fim do século XX com algumas modificações, já não se falava num GAZ (posteriormente um GAZ-24) mas num Mercedes ou BMW, curiosamente marcas provenientes dum país também ancestralmente hostil à Polónia, que era guiado pelo Diabo ou por - sinais do tempo – skinheads. Os automobilistas abordavam pessoas nas ruas para lhes perguntarem as horas e alegadamente matavam-nas ou as vítimas morreriam no dia seguinte àquela hora. Tanto na versão mais recente como na mais antiga nota-se o interessante registo de colocar antigos inimigos da nação como maus da fita, talvez de maneira deliberada por forma a incutir a aversão aos elementos visados desde tenra idade.

Seria curioso saber o que as avós contemporâneas dizem aos seus netos para os persuadir a serem bons meninos. Será que as ameaçam com o Putin?