terça-feira, 28 de maio de 2013

As virgens de Carnide

A este raciocínio poupam-se alguns amigos meus benfiquistas aos quais ofereço um respeitoso silêncio. Sei o que lhes dói porque já passei pelo mesmo.



Fundas e pistolas, sachos e baionetas, forquilhas e rifles, fisgas e revólveres, de tudo foi apontado aos sportinguistas que riram da desgraça dos seus rivais encarnados - perderem três títulos nos últimos minutos das finais. Lamentaram-se os perdedores acusando os sportinguistas em causa (nem todos os sportinguistas fizeram pouco da situação) de pouco patriotismo, de pequenez institucional por nem terem chegado às decisões, de inveja, de celebrar mais as derrotas alheias do que refletir na vergonha de época que assinaram. Pode ser que não tenham ainda percebido a atitude desses sportinguistas, por isso venho por este meio esclarecer que:

  1. A 14 de maio do ano de 2005, o Sporting perdeu no Estádio da Luz hipotecando nesse jogo as possibilidades de lutar pelo título de campeão nacional. Quatro dias depois perderia no próprio Estádio José Alvalade a final da Taça UEFA com o CSKA de Moscovo. Estes dois sucedimentos originaram uma onda de larachas e anedotas sobre o Sporting e sobre o seu treinador de então, José Peseiro, alcunhado de 'treinador do quase' porque quase era campeão, quase ganhava a Taça UEFA, quase que... Adeptos benfiquistas comemoraram a vitória dos
    russos na rotunda do Marquês de Pombal abraçados a moscovitas segurando cachecóis do CSKA, eu próprio fui provocado por simpatizantes dos encarnados no restaurante lisboeta onde jantei a seguir ao jogo.
  2. A 11 de maio do ano de 2013, o clube sedeado em Carnide perde no Estádio do Dragão nos últimos segundos hipotecando nesse jogo as possibilidades de lutar pelo título de campeão nacional. Quatro dias depois perderia em Amesterdão a final da Liga Europa com o Chelsea nos últimos segundos. Onze dias depois perderia no Estádio Nacional a final da Taça de Portugal nos últimos minutos. Antes tinha ganho ao Sporting no seu estádio num jogo manchado por erros de arbitragem flagrantes com claro e consensual prejuízo para os 'Leões'.
  3. Em 2005 a imprensa fez uma cobertura moderada e deu algum destaque às hipóteses que a equipa leonina tinha em protagonizar uma época histórica, conquistando simultaneamente campeonato nacional e um título europeu.
  4. Em 2013 a imprensa fez manchetes e abriu noticiários televisivos com a iminência duma época de sonho (sic) consubstanciada num campeonato garantido (ou reservado) ainda com 3 jornadas para terminar.
  5. Em 2005 não se registou nenhuma campanha de súbito apelo ao patriotismo português embora na equipa portuguesa presente nesse encontro tivessem jogado a titular seis jogadores portugueses, quase todos internacionais A: Ricardo, Miguel Garcia, Beto, Pedro Barbosa, João Moutinho, Sá Pinto mais Nélson, Rui Jorge, Custódio e Hugo Viana no banco de suplentes.
  6. Em 2013 surge um movimento de inflamação nacionalista suportada à dimensão nacional pelos media para que os portugueses apoiassem incondicionalmente a equipa portuguesa paricipante na final na qual apenas jogou um português (André Almeida) e dois ficaram no banco (Paulo Lopes e André Gomes), futebolistas desconhecidos para a maioria dos compatriotas.
  7. Em 2005 não havia Facebook nem Twitter, por isso não era possível 'apagar' amigos das nossas existências. Gramávamos com os gozos deles sempre que eles nos apareciam à frente, engolíamos e seguíamos em frente com a dignidade possível mesmo que nunca tivéssemos feito publicidades antecipadas nem tivéssemos cantado vitórias prematuras.
  8. Em 2013 fomos bombardeados com ideias e sugestões de que neste ano 'é tudo nosso!', em todos os murais se viam contagens decrescentes para os fogos de artifício, para as rolhas dos espumantes saltarem, para as comemorações provocatórias no local tornado célebre pelo rival, para a confirmação da ímpar grandeza do 'maior clube do mundo'.
Sabemos como a história foi, sabemos como as pessoas são.
Não nos congratulamos com a vitória do FC Porto porque têm sido esses pilhos que mais têm prejudicado o Sporting nas últimas três décadas. Não vitoriamos a vitória do Chelsea porque é um clube que representa a podridão do dinheiro fácil que está a destruir o desporto-rei. Não celebrámos a vitória do Vitória de Guimarães porque é um clube que nada nos diz...
... mas festejamos a derrota da vossa arrogância, da vossa insuportável arrogância que não conseguem conter enquanto estão na mó de cima e que depois de torna em vergonhosa frustração quando passam para a mó de baixo como se viu no deplorável espetáculo protagonizado por Cardozo e o seu próprio treinador. Representam o que há de mais foleiro no desporto, o não saber perder e - pior - não saber ganhar.

O peixe morre sempre pela boca e enquanto vocês continuarem a vomitar peçonha, enquanto continuarem a darem espetáculos de presunção, enquanto prosseguirem nas provocações e no espírito petulante que caracteriza a vossa gente, nós continuaremos a festejar e a alegrar-nos com o vosso insucesso. Soubessem vocês ganhar e respeitaríamos agora a vossa dor, mas não sois dignos de tal misericórdia. Não vos respeitamos porque vocês não se sabem dar ao respeito.

Portanto, inchem! Até que a cabeçorra vos rebente!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Os polacos e os elevadores


Como é que se mete um elefante num frigorífico em três tempos?

1º tempo - abrir a porta do frigorífico;
2º tempo - introduzir o elefante;
3º tempo - fechar a porta do frigorífico.

Como é que se mete uma girafa num frigorífico em quatro tempos?

1º tempo - abrir a porta do frigorífico;
2º tempo - remover o elefante;
3º tempo - introduzir a girafa;
4º tempo - fechar a porta do frigorífico.


Os polacos têm um problema com os elevadores, não gostam de elevadores mas gostam menos de escadas e por isso têm de gramar os elevadores nem que seja para um primeiro andar. Leva-se menos tempo a subir um lanço de escadas para se chegar ao primeiro andar do que esperar pela chegada dum elevador desde as lonjuras do 12º piso, aguentar pacientemente a diminuição da velocidade da cabine quando esta atinge o nível pretendido, mais uma eternidade até que as portas abram o suficiente para espremer o corpo entre as pessoas que ainda saem do elevador e a lateral dos acessos. Quando finalmente conseguem passar pelo afunilado corredor de entrada - nunca percebi porque é que não esperam que as pessoas saiam para poderem ter espaço para entrar - estacionam imediatamente dois passos à frente da entrada batendo furiosamente nos botões dos andares como se fossem Jerry Lee Lewis ao piano, soprando e bufando enquanto a porta não se fecha e atirando furiosos olhares a quem chega atrasado ao embarque e protela a partida da nave.

Outra coisa que os polacos odeiam nos elevadores é quando alguém se atreve a partilhar a viagem na 'sua' cabine, um aborrecimento ter de dar os bons-dias ao estranho, ter de dividir o ar com ele, cheirar a sua água de colónia, sentir o chão se o intruso ousar mexer-se. No mundo ideal cada polaco teria um elevador privado cujas portas abrissem e fechassem em 2 nanossegundos e que os transportasse para o andar desejado numa velocidade superior à que os perdigotos atingem quando saem da boca em forma de espirro, nem que seja para um primeiro andar. Os polacos vivem maldizendo o seu trabalho, queixam-se da rotina e da monotonia (bem, para falar a verdade não há nada de que os polacos não se queixem - até do bom tempo) mas esperam que o elevador os leve para a sua secretária o mais depressa possível.

Não sei quantas vezes fui fuzilado por ter tido o arrojo de entrar no elevador atrás dumas ancas femininas adequadamente entaladas numa saia justinha mas formal enquanto a dona da saia já premia em delírio o botão verde do fechar, também não sei quantas vezes obriguei homens e mulheres a mastigar um 'bom dia' contrariado à minha descontraída penetração no autismo deles. Deve ser lixado, querer ser mau-feitio e azedo com o mundo quando se vai para o trabalho estrangulado por uma gravata que mais parece uma grilheta e entra um gajo de cabelo espetado, barba por fazer, calções de ganga e ténis da Le Coq a distribuir cumprimentos sorridentes e ainda por cima a avaliar gulosamente as medidas das garinas.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Quinta à tarde com um pardalinho

22º em Varsóvia é o equivalente a 32º em Faro por vários motivos. Porque o ar é seco e não se movimenta, porque não há brisa marítima que sopre, porque não existe uma praia na qual se possa refugiar. Basta o mercúrio pular ligeiramente acima dos 20º para os polacos se espojarem na relva dos parques como lagartixas que aceitam os tímidos raios de sol primaveril, calorzinho prazeiroso mas insuficiente para animar este algarvio a apanhar esses banhos de claridade que não bronzeiam nem aquecem verdadeiramente, quando muito esticar-me em espreguiçadeiras que alguns restaurantes dispõem para os seus clientes mandriarem em conforto. Foi o que fiz hoje aproveitando um buraco de quatro horas no dia de trabalho.

aqui tinha mencionado um belo lugar que entretanto se tornou num dos meus preferidos, o Cafe Kafka, lugar de paragem obrigatória pelo menos uma vez por semana para aconchegar o estômago com as suas massas e lavar as vistas com a sua freguesia. Graças ao quente abraço do sol, muitas polaquinhas já escolhem arregaçadas saias como toilette e isso proporciona uma agradável paisagem de pernas de leite a cortar o verde do parque Kazimierzowski, alvas ninfetas discretamente espiadas por cima das páginas dum companheiro de digestão. É notável o poder de renascimento que o sol confere à cidade e às pessoas, todas as roupas sombrias e tristes são trocadas por tonalidades garridas e berrantes, as sweat-shirts dão lugar a blazers de linho, as botas de trekking são substituídas por sapatos de pano, os gorilas carecas de lata de cerveja em riste saem de cena para que hipsters viciados em sodas e gadgets ocupem os seus lugares. Entre eles, rindo despreocupadas e descarregando quantidades incalculáveis de sensualidade em cada cruzar de perna estão elas, pueris e inocentes no seu ar tranquilo, venenosas e penetrantes quando tocam no nosso olhar, uma mistura milimetricamente equilibrada de inocência e volúpia que nenhum ser com um pingo de testosterona a correr-lhe no sistema consegue ignorar. As t-shirts de golas redondas e alargadas permitem a visão (ou a previsão) de níveas maravilhas escondidas durante meses, sufocadas pelas rigorosas lãs e fazendas mas que agora pedem ar fresco e liberdade, quase como se quisessem ter o papel de maças na mão de malabaristas, serem atiradas ao ar e recolhidas em permanente balanço e desatino. Os vestidos de linho compõem quadris geometricamente desenhados onde nenhum centímetro está em demasia, caem com a formosura e graciosidade duma leve capa de água colorida e permitem idear imaculadas nádegas cor de algodão que combinam em excelência com os olhos celestes que lhes acentua a brancura da pele e com o áureo cabelo que remata tão bela criatura. Um colírio, um bálsamo, uma sinfonia, uma obra-prima, um prazer imensurável. Retomo a leitura aconselhada por uma amiga com olho de lince nestas coisas dos escritores, precisamente para não me perder (mais) em pensamentos indecentes e inconsequentes, engulo a última garfada de esparguete procurando não chupar o fio para evitar alegorias, volto-me para a fatia de bolo de amoras e natas e eis que noto a visita inesperada dum ladrão penado, um pardalinho que terá aterrado na mesa, saltitado furtivamente para o pires e enquanto eu me esmifrava a cocar as miúdas o mariola banqueteava-se com a minha sobremesa debicando sucessivamente o chantili até ficar com o bico todo branco, uma espécie de palhaço alado engraçadíssimo que atraiu a atenção de duas formosas donzelas que entretanto se sentaram na mesa da minha direita.

- Oh, que pássaro tão giro!

(pássaro em uma gíria polaca para pénis. Eu levo a limonada à boca e respondo com a pouca calma que os nervos permitiam)

- É. Já viu? Não tem vergonha nenhuma.

('sai ao dono', pensei em dizer mas nem o pássaro era meu nem era do meu pássaro que queria falar. Dei mais um golo na limonada para evitar dizer disparates e rezei para que elas não se levantassem e viessem ver o meu pássaro. Quero dizer, o pássaro que estava na minha mesa)

- Os passarinhos são tão divertidos, eu gosto muito de pássaros. - diz uma delas.

(engulo o resto da limonada de um trago, enxoto o pardal para que pudesse finalmente comer o bolo que entretanto já tinha sido ratado pela ave em quase um quarto. Admirável a capacidade que o bicho revelou em comer bolo.)

- Pois é, em chegando a primavera os passarinhos parece que ganham nova vida.

(atiro com quase o bolo todo pela goela abaixo para selar o chorrilho de baboseiras que me saíam da boca, meto o livro debaixo do braço e abalo desengonçadamente dali antes que dissesse algo ainda mais comprometedor.)

- Do widzenia! - despeço-me de forma atrapalhada cuspindo pedaços de amora. Subo a rua Obożna
para voltar ao escritório da Universidade e começo a limpar a transpiração procurando apagar o episódio da mente e tentando focar-me no trabalho que me esperava. No passeio, um corvo esgravata o cadáver fresco duma gralha, tem o bico cheio de penugem. Uma imagem que eu não esperava ver nunca, sempre tive os corvos e as gralhas como primos de inverno varsoviano, parentes iguais no grau de feiura e mau agouro e agora ali estava um a esventrar o outro num acto de tal crueldade que parecia posto lá de propósito por Varsóvia para me avisar que eu não me esquecesse da outra face da Cidade Capital, que dá com uma mão mas que tira com outra.

Eu agora atravesso uma fase mais budista, de maior introspeção e reavaliação de muitas coisas. Este talvez tenha sido este o sinal que precisava receber para sentir que é aqui que eu devo estar... e ficar.