quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma Algarvia na Polónia



Finalmente, depois de muitas hesitações, a minha mãe resolveu visitar a Polónia. Sempre lhe fez confusão a duração da viagem, quatro horas dentro dum avião para ela equivale a quatro anos para o mortal comum, mas como eu e a Lena íamos no mesmo voo a tortura foi menos dolorosa. Descolámos às 23:30, cruzámos a Europa durante a madrugada e aterrámos em Varsóvia perto das 5:00. Contrariando a minha dificuldade em adormecer em transportes consegui dormitar umas horas, tal não era a sonolência, e quando acordei olhei para os lados vi a minha namorada a dormir que nem uma pedra, porém quando virei a cabeça para a direita lá estava a minha estoica mãe de olho mais aberto que o mocho da anedota.

- Então, não dormiste? - Perguntei ao que ela acenou negativamente. Já ter entrado na aeronave tinha sido um progresso, tranquilizar-se ao ponto de passar pelas brasas a bordo será o passo seguinte.

Depois de duas semanas na Cidade Capital a minha mãe pôde desmistificar algumas ideias que possivelmente teria, pelo menos sabe agora que o verão em Varsóvia pode ser tão ou mais quente do que em Faro, que a minha casa não oferece risco de congelamento durante os rigorosos invernos polacos, que as imperiais nesta terra podem ser de litro, que o carrinho que era do nosso tio João continua estimado e bem tratado. Fascinou-se com os corvos e as gralhas, aves repulsivas na minha opinião mas exóticas para quem não convive com elas, agradou-lhe a largura e limpeza das avenidas, a imponência dos monumentos, a vitalidade da Cidade Velha, o tamanho das doses nos restaurantes. No dia do aniversário, a Lena levou-a a um restaurante grego onde às sextas se dança em cima das mesas depois do jantar e quando lá cheguei encontrei-as num pé de baile felizes da vida com dois mojitos semi-bebidos na mesa ao lado. Eu vinha cansado depois do treino e por isso contive-me na dança mas a cota respondia com vigor às solicitações da polaca, pulando e girando até que o gás se me acabou e dei por finda a rebaldaria quando o relógio caminhava para as duas da matina.

Tive o prazer de cozinhar para a minha mãe, obviamente com a ajuda inestimável da Bimby que surpreendeu pela praticidade – Para fazer um bacalhau à Zé do Pipo tinha de sujar alguns três tachos e aqui só se usa um aparelho – disse. Conheceu alguns dos meus amigos, foi ver um jogo do Inter, passeou pela cidade, provou pierogi e panquecas de batata, viu como se fazem pastéis de bacalhau em Varsóvia (cortesia do amigo Costa do Portucale) serenou ao fim de quase nove anos de incógnita e compreendeu porque gosto tanto de cá viver.

A próxima batalha vai ser trazê-la cá no inverno, não para que ela tirite de frio nem para provar a horrível cerveja quente, mas por causa da neve. É que para nós algarvios, a neve e o nevar é uma coisa de filmes de televisão. Eu estreei-me na neve quando já tinha 28 anos, a minha mãe viu neve em Faro quando tinha 5 ou 6, eu vi nevar pela primeira vez numa noite de novembro em Varsóvia, a minha mãe ainda não viu nevar. Pode ser que, agora que ela já conhece o caminho, seja mais fácil de convencê-la a embarcar.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Retalhos da vida de um Algarvio - Parte 24

A chegar à Ilha do FarolJá há muito tempo que não passava umas férias tão boas em Faro. Apresentei a minha cidade-berço à namorada, ela conheceu os meus amigos de infância e a minha família, curtimos um tempo que convidava constantemente a banhos de sol e de sal, participámos naquela que é para mim a melhor festa do Algarve (Columbus Boat Party) e desfrutámos imenso de Faro. Foi com misto de espanto e alegria que constatei a vitalidade e o dinamismo que Faro evidenciou enquanto eu lá estive, a primeira quinzena de agosto. A Baixa estava sempre cheia de gente de Faro e de fora, conheci estabelecimentos recentes com conceitos modernos e atraentes e que são obra e ideia de gente minha amiga, entre os quais destaco o requintado Mezzanine do João Tiago, o refrescante The Woods do Mauro e o elegante Aperitivo do Miguel Gião que continua a ter aquele toque de Midas que o distingue da concorrência. A nova unidade Chelsea perto da Zara e o disco-bar Castelo são dignas de menção honrosa, casas que oferecem predicados de bom-gosto não só aos farenses como aos visitantes. Um salto qualitativo enorme em comparação com o que Faro habitualmente tinha para dar e que acabou com a pergunta que sempre fazia: „Onde é que eu vou levar a moça?”

Fiquei orgulhoso e comovido, confesso, quando cheguei à Rua de Sto. António numa bela sexta-feira e vi esplanadas completas. Eu já estava habituado a ver a principal artéria comercial de Faro como uma rua-fantasma de lojas encerradas e anúncios de trespasses onde a caca de cão minava de forma perene o belo desenho de calçada portuguesa e o esplendor de casas como a boutique Pigalle ou as sapatarias Charles e Italus (o furor que fez aquele reclamo luminoso em forma de cruz) já só existiam no meu imaginário – uma era da qual vem o original e resistente gato de neons da Ótica Graça – porém subitamente deparo-me com um amplo leque de cafeterias e estabelecimentos comerciais pujantes de ofertas e cheios de fregueses. Até o velhinho café Aliança reabriu as portas com uma nova conceção mas preservando o charme ancestral próprio de um dos três cafés mais antigos de Portugal.

É uma dupla satisfação, esta de ver Faro a recrescer. Por um lado nota-se que o povo está mais animado, readquiriu a alegria que eu sempre lia nos rostos da minha gente mas que andava arredada devido aos últimos tempos austeros. Os restaurantes da ilha2013-08-03 01.19.49 do Farol e da Praia de Faro estavam cheios, na Festa da Ria Formosa era difícil encontrar lugar para sentar e comer. Está mais folgado, o algarvio. Está mais tranquilo, recuperou a vontade e a iniciativa, quer fazer coisas, jantar fora e ir a lugares, tem planos e projetos, abandonou o pensamento curto prazo e o “logo se vê”. Por outro lado não posso ficar indiferente a ver rapaziada que eu prezo tendo sucesso numa indústria tão competitiva como a restauração e numa terra tão ingrata para os seus próprios filhos como é Faro. As casas acima mencionadas são uma amostra dos novos ventos que sopram na minha cidade no campo do empreendorismo, novidades de risco porque priorizam a qualidade e o requinte à habitual chungaria que traz lucro fácil. É o caminho mais complicado mas aquele que na minha opinião enobrece tanto os que apostaram no nível elevado dos seus serviços como a cidade que ganha por ter estabelecimentos de tal categoria. O cliente é presenteado com atendimento e produto de classe, fica com vontade de voltar, todos lucram.

20160618_105905Por isso mando daqui um abraço de reconhecimento pela coragem àqueles que possuem uma visão inovadora e a noção de que Faro precisa de locais assim, bem como a ousadia de meterem mãos à obra e edificarem os seus projetos, e uma palavra de agradecimento por contribuirem desta forma para a prosperidade da minha terra. Graças à vossa determinação e audácia sinto-me melhor quando volto à nossa cidade e tenho mais opções para onde levar os meus amigos. Que nunca vos falte a inspiração.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Isto não foi só um jogo de futebol - III

Bandeia ao pescoço no Euro2012Por norma não sou supersticioso. Tenho algumas pequenas neuroses como tentar que seja o pé direito o primeiro a tocar no chão quando me levanto de manhã mas não tenho problemas com gatos pretos, passar por baixo de escadas ou entornar sal na mesa. Porém a coisa muda de figura no que diz respeito ao futebol porque nesse campo há coisas de que não abdico – um determinado par de boxers que (quase) sempre visto quando o Sporting joga, se a bola sai nossa nas peladinhas ou nos jogos eu tenho de a tocar antes do adversário e a minha velhinha bandeira de Portugal que está sempre ao pescoço em dia de jogo da Seleção. Há quatro anos tirei a bandeira do pescoço antes dos penáltis contra a Espanha e deu no que deu, nunca me perdoei e estou absolutamente convencido de que fomos eliminados do Euro2012 por me ter esquecido de pôr a bandeira onde devia, uma cruz que carrego comigo desde então. Neste Campeonato Europeu não facilitei e mal cheguei a Varsóvia, porque os dois primeiros jogos de Portugal vi-os em Faro no Jardim das Pirâmides na companhia da turma de outrora, vesti a minha camisola, atei a bandeira à nuca e repeti o ritual em cada jogo prometendo lavar a camisola apenas se perdêssemos.

Geralmente costumo ver os jogos sempre no mesmo lugar mas desta calhou não repetir nenhum local. Sozinho em casa contra a Hungria, com dois Nunos num bar à beira do rio contra a Cróacia, na casa de amigos com polacos e portugueses contra a Polónia, na casa dum português com casais amigos contra o País de Gales e a Final foi assistida em ecrã gigante entre compatriotas e respetivas namoradas num parque aberto com geleiras cheias de Super Bock. Estava preocupado porque não gostava de mudar de lugar entre jogos e porque nesse dia a minha Maria quis ver a partida e resolveu juntar-se à comitiva, um novo dado na equação que poderia desestabilizar a harmonia e a consequência dos resultados de Portugal. Envolto nesta tempestade de pensamentos, entre a possibilidade de ela poder trazer má sorte e a segurança que a minha bandeira me conferia mais a insuportável carga de nervos que uma Final implica, mamei com o John - inseparável compincha nestas batalhas - duas frescas quase de rambetão, acendi o primeiro dos 150 cigarros e ante os protestos da comadre que já não podia ver-me a andar de um lado para o outro, sentei-me no chão com o resto do pessoal a ver o jogo.

Os franceses ganhavam quase todas as segundas bolas e os duelos corpo-a-corpo, têm mais envergadura que os portugueses e os únicos que lhes podiam dar luta nesse aspeto eram Pepe, Fonte, William e Cristiano. Quando este ficou inutilizado perto do primeAdrien e Renatoiro quarto de hora de jogo, quando eu pensava que ia beber o resto da geleira num só gole, senti uma onda de calma olímpica a trespassar-me o corpo e em vez de prenunciar a derrota cantada em virtude de termos perdido o nosso melhor jogador experimentei uma profunda serenidade como que sentisse que a infelicidade do nosso capitão iria catapultar a Seleção para uma demonstração de união e solidariedade que culminaria na vitória que todos dedicariam a Cristiano Ronaldo.

Comecei a perceber que os franceses não estavam preparados para jogar contra um Portugal sem CR7 porque os jogadores das Quinas deram as mãos e desmultiplicavam-se em ações de sapa, guerrilheiros ibéricos que sabotavam as iniciativas gaulesas tentando bicar Lloris quando fosse possível e a partir dos 75 minutos constatei que eles estavam cansados, pensavam que iam limpar o jogo em hora e meia e estavam nos Campos Elíseos antes da meia-noite mas já se viam a ter de disputar um prolongamento contra aqueles pequenos e insolentes sacaninhas de vermelho. Fernando Santos põe Eder em campo e estranhamente concordo com a substituição, elogio a audácia, 'O pino vai segurar a bola e esperar pelos médios, os franciús estão rebentados!'. Os meus amigos aplaudem a jogada porque o Ricardo, camarada carioca dos meus primeiros dias de Varsóvia e que assistia ao jogo conosco, tem apelido idêntico – Éder. Dizem que ele vai resolver o jogo, eu rio para dentro e penso 'Era lindo, mas tal coisa significava o fim do futebol!'. Os cigarros desapareciam, a cerveja também, as unhas começaram também a sofrer consequências, a noite chegou e trouxe com ela o prolongamento, Patrício salva mais uma, e outra, o Gignac no poste!!, eu agarro o John pelos colarinhos que cospe a cerveja e grito-lhe a velha máxima que 'se esta não entrou então não entra nenhuma, punheta!' e vou rezando que 'quem não mata, morre'. Cresce a crença que podemos realmente ganhar o jogo, que podemos fechar o bico ao galo e protagonizar um St.Denisazo. Raphael à trave! O John urra que 'foda-se! Era esta!' Em silêncio concordo com ele e faço votos para que este golo não venha a fazer-nos falta. Pouco depois Eder recebe de João Moutinho, enxota Koscielny, flete para o meio e de cabeça em baixo puxa a culatra direita e reencarna Eusébio contra a Coreia do Norte em 1966. Histeria no nosso acampamento! O John pula e abraça o Ricardo, o Éder, e todos os que lhe aparecem à frente, a moça encolhe-se com medo que eu lhe pregue alguma punhada distribuida pela emoção, todavia mantenho-me sentado a digerir o que está a acontecer, leio a frustração dos franceses na reação de Pogba, os gajos estão desorientados porque não esperavam que isto pudesse acontecer, puxo mais um cigarro e olho para o relógio, faltam 11 minutos. Isto pode mesmo acabar bem.

À entrada para os descontos levanto-me e fujo. Fugi para um lugar onde não havia ninguém e vi de esguelha o último minuto da Final. Percebi que íamos ser campeões europeus e eu não sabia como proceder. Ia acontecer o maior evento da nossa história contemporânea desde o 25 de abril, caramba! Nunca na vida imaginei que veria o meu país campeão de futebol e agora não estava preparado para o momento. Eram sempre os outros, nunca nós, mas agora era a nossa vez. Como se faz? Tinha receio, era a primeira vez e a primeira vez é sempre atabalhoada, ansiedade, inexperiência. Ronaldo de joelho entrapado salta no banco e empurra o nosso selecionador, empurra toda a equipa, empurra uma nação para o seu destino vitorioso, para o triunfo. O árbitro apita, somos campeões e eu desabo a chorar.

Não sei quanto tempo fiquei chorando ajoelhado na relva mas deve ter sido um bom bocado porque senti uma mão nas costas e a voz do Ricardo, esse Éder, dizendo.

- Cara, parabéns! Mas levanta daí porque você tem de me agradecer o gol e o segurança está olhando para você faz cinco minutos.

Levantei-me chorando e chorando abracei aquele meu Éder, chorando telefonei à minha mãe, chorando recordei-lhe o tio João e o avô Luís que com certeza estavam também a limpar os olhos e a brindar com tinto do Poceirão, chorando se aproximou o John para um abraço e palavras embargadas, chorando gritámos 'Campeões!'

Foi a maior alegria da minha vida juntamente com o título de 2000.

A miúda afinal não trouxe azar, a bandeira cumpriu a sua função e Portugal cumpriu-se como Nação.

Portugal Campeão da Europa

PS – A maior diferença entre ver os jogos da Seleção em Portugal e no estrangeiro é que fora de Portugal não importa se é o Adrien que joga ou o Renato Sanches. É Portugal quem joga. Eu prefiro assim.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Isto não foi só um jogo de futebol - II

Portugal derrota a CroáciaÀ medida que vou descendo à Terra e processando os factos vou finalmente compreendendo a dimensão do sucedido. O Portugal-França de 10 de julho não foi apenas a final do Campeonato Europeu mas também o final dum estado de coisas, Portugal é finalmente uma seleção vencedora!

Nascido na primeira metade dos anos 70 – ainda vivi quatro meses e meio de salazarismo – num tempo em que o futebol, não necessariamente jogado com bolas, era a diversão principal da malta, não foi surpresa que eu crescesse apaixonado pelo desporto-rei e que seguisse com devoção as peripécias dos meus dois clubes preferidos, Farense e Sporting por esta ordem. Em 1982 perguntei por que razão Portugal não estava no Mundial se a Espanha era mesmo ao lado. Eles teriam sido tão sacanas que nem nos tinham convidado para a festa? A resposta foi crua, não tínhamos sido suficientemente bons para nos qualificarmos e restava-nos apoiar o Brasil. A Seleção Nacional ocupava o lugar de um tio distante que me vinha visitar de quando em quando, não era muito famoso, não vencia muitas vezes e a primeira vez que deu sinal de vida foi aparecendo na televisão a partir de França em 1984 quando assisti a uma monumental chapelada de Sousa à Espanha, tremendas defesas do valente e saudoso Bento, incansáveis cavalgadas de Chalana na esquerda e ao felino Jordão a bisar frente a Bats. Pouco tempo depois em Estugarda, aquela castanhada imperial de Carlos Manuel fez-me manter os olhos no tio vermelho-e-verde porque afinal ele sempre era gajo para me dar umas alegrias.

Mas não, regressámos à vida de país pequenino habituado a ver os grandes na televisão, até que em 1989 e 1991 alcançámos triunfos à escala mundial. Iniciou-se então um período em que nos tornámos clientes habituais das grandes competições, presentes em todos os Mundiais realizados a partir de 2002 com um honroso 4º lugar em 2006 na Alemanha e nos Europeus desde 1996 registando uma presença na final de 2004 naquele que é considerado um dos dois maiores melões do futebol português. Em (quase) todas estas presenças, um denominador comum – jogámos muito, encantámos, iludimos… não vencemos. Era esse o nosso fado, a nossa sina, a dum povo bom mas brando, gajos porreiros, dão uns toques fixes mas acagaçam-se quando defrontam os senhores da bola. Quando chegava o momento das decisões terminava o futebol do “Brasil da Europa”, era insolente pensar que se podia ir mais além, ou era o árbitro que verificava o nosso peso reduzido nas instituições que regem o futebol ou erros próprios consequência de pressão psicológica insuportável, seguidos dos habituais discursos redondos “que é preciso levantar a cabeça e olhar em frente”. A atitude típica de quem “deu o que pôde e a mais não era obrigado”. Nunca se impôs um golpe de asa, nunca se exigiu uma superação, os Portugueses estavam habituados a serem como os testículos – de alguma maneira participavam na festa, até chegavam a bater à porta mas nunca os deixavam entrar.

Por culpa do chip de humildade e servilismo habituámo-nos a ver os senhores da bola a ganhar, contentando-nos com umas pontuais desfeitas à Holanda e Inglaterra e eventuais cócegas às Franças e Alemanhas. Sem ser em 2004, nunca nos aventurámos a fixar objetivos mais ambiciosos porque isso era sonhar demasiado alto e aos portugueses tal era terminantemente proibido. Sonhar. Sempre foi essa a grande diferença entre a Seleção Portuguesa e as grandes potências europeias – Portugal sonhava, os outros planificavam.

Escrevi as últimas linhas propositadamente no tempo pretérito porque é minha convicção que essa era findou. Um pontapé do mais mal-querido jogador da mais mal-amada seleção portuguesa que me lembro injetou uma dose cavalar de vaidade nos Portugueses. Vaidade, essa substância a que o Lusitano é tão visceralmente alérgico e que o faz desdenhar dos maiores portugueses contemporâneos – José Mourinho e Cristiano Ronaldo. De repente deixámos de ser aqueles gajos porreiros que se convida para animar um jantar para sermos uma sumidade continental do domínio do futebol, éramos campeões, Campeões, CAMPEÕES CARALHO!!

O contexto da vitória de Portugal no Euro2016 e a maneira como foi conseguida, desdeCristiano marafado com as barracas da nossa defesa o convencimento mundial duma derrota antecipada até à subtração dramática do seu timoneiro no relvado, quero muito acreditar que signifique o abrir de um novo capítulo para Portugal e para os Portugueses e que os meus compatriotas vão interiorizar a ideia de que também eles são capazes de triunfar indepentemente das circunstâncias. Os Portugueses não são inferiores a nenhum povo no globo, mostrámo-lo há 500 anos e recordámo-lo agora em condições muito adversas. Somos competentes, talentosos, profissionais, inteligentes, capacitados e ainda por cima somos desenrascados que é uma definição que não consta em nenhum outro idioma no mundo! Temos o direito (e o dever) de olharmos para todos olhos nos olhos, de reivindicar a nossa relevância, o nosso peso. Chega de fado, do destino, da fatalidade, dessas merdas todas com as quais jutificamos e desculpamos o fracasso.

Que nunca mais um Português se deixe subjugar pois o esplendor da nossa Pátria foi novamente levantado! O Europeu mostrou que quando o País se une alcançam-se feitos incríveis.

E que a classe política reflita na postura dos homens que representaram Portugal em França. Serviram o País com sentido de responsabilidade, com todo o esmero e sem olharem a interesses pessoais. Vejam como foram recebidos pelo povo. Agora pensem.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Isto não foi só um jogo de futebol - I


O emigra verga a mola

Num país que não é seu

Produz fortunas alheias

Com as mãos que Deus lhe deu

Zeca Afonso

Ponto prévio. Não sou daqueles que agora oportunisticamente dizem que acreditou desde o princípio. Não, não acreditava. Nunca pensei. Se antes do Euro me dissessem que chegávamos à meia-final eu ficava satisfeito, disse-o publicamente e repeti-o nos media polacos. Jogámos mal na fase de grupos, defendemos sofrivelmente e nada me fazia convencer que chegávamos longe. Apesar de mais estável e equilibrado no plano defensivo, o jogo da Croácia foi um barril de nervos e não vi nada de especial contra a Polónia, portanto só comecei a cogitar uma gracinha depois de termos marcado o segundo golo ao País de Gales.

EderzitoParis é a segunda cidade com mais portugueses a seguir a Lisboa e todos conhecemos a importância que a comunidade portuguesa tem na sociedade francesa, uma comunidade que é reconhecida unanimemente como trabalhadora, honesta e diligente. Comunidade modesta, como foram ensinados nos sombrios anos do fascismo do Estado Novo cuja doutrina nos entranhou uma tal humildade que não raro resvala para o servilismo ao qual fiz referência num artigo anterior, os portugueses começaram por ocupar lugares em setores de base como a construção civil e o housekeeping tendo sempre sido alvo da chacota dos franceses, povo generoso no que toca a demonstrações de petulância e sobranceria.

Quando trabalhei na então EuroDisney, corria o ano de 1993 e tinha o vosso escriba 19 aninhos, os meus colegas de trabalho não acreditavam que eu era português pelo facto de ser alto (uns 1,85 que fogem ao padrão fisionómico tuga) e falar quatro línguas. Mais parvos ficaram quando lhes mostrei fotografias da minha namorada ao tempo, uma modelo morena (das poucas vezes em que abri exceções a louras) que lhes arrancou ‘brravòs’ de aprovação porque eles pensavam que as mulheres portuguesas tinham bigode. Naquele tempo dizia-se que quando os portugueses chegavam à estação de comboios eles eram atirados à parede, os que ficassem agarrados à parede eram canalizadores e os que caissem eram ladrilhadores. Este exemplo dá uma ideia do que muitos lusos penavam na França, da forma como eram desconsiderados e vistos como raça inferior, nas dificuldades que tinham em subir na vida e criar estatuto. Éramos um país pequeno em tamanho e em relevância, europeus de segunda categoria, bons para assentar tijolo, servir à mesa e fazer camas.

Penso que nenhuma seleção gozou de apoio tão notável como a Seleção Portuguesa neste Euro2016, por via da comunidade portuguesa radicada em França que sempre acolhe os desportistas nacionais com especial carinho e efusão. A presença dos emigrantes à porta do centro de estágio onde a Equipa das Quinas ficou hospedada a 25km de Paris foi uma constante e não foi ignorada pela comitiva portuguesa como atestam os treinos à porta aberta, sessões de fotografias e autógrafos e o agradecimento final quando os futebolistas mostraram o caneco aos adeptos antes de abandonarem Marcoussis. Atrevo-me a dizer que para aqueles emigrantes, a ocasião de ter os seus ídolos à distância de uma braça é uma vitória semelhante à que os jogadores obtiveram no relvado.

E são estes portugueses que vivem num país altivo e presunçoso que passam diariamente por dificuldades só por terem nascido portugueses, estes valorosos compatriotas que se prestam a desempenhar trabalhos que os nativos arrogantemente se recusam a fazer, são estes portugueses que foram bombardeados com a propaganda dos meios franceses de comunicação social e das individualidades gaulesas de que a Final do Campeonato Europeu eram favas contadas, que os portuguesitos não tinham hipóteses, que iam levar na cabeça outra vez como em 1984 e 2000 porque era esse o desfecho condizente com a nossa condição de pequenos. Eles até já tinham um autocarro descapotável pintado com os dizeres “France Champion d’Europe 2016”!! Malta minha amiga de Faro foi ver a Final e contaram que no caminho para o pomposamente designado Estádio da França o taxista francês meteu conversa perguntando o prognóstico para o resultado final. Como os meus amigos respondessem que Portugal ia ganhar, o taxista, convencido, volveu:

- Vá, agora a sério. Qual vai ser o resultado final?

Domingo finalmente a justiça venceu no futebol. Não a justiça das quatro linhas porque Apoio dos emigrantes em Marcoussisessa é subjetiva e muda em função das interpretações das estatísticas e das intensidades das ações. Venceu a justiça porque venceram os oprimidos, os simples, os atormentados e alguma vez o cínico chauvinismo francês teria de ser castigado. Tínhamos de acertar agulhas com o passado e com o presente, com os 50 anos de presença portuguesa em França e com os Platinis corruptos, os Marcs Battas prepotentes, os Thierrys Henrys batoteiros, os taxistas convencidos, a atitude de galo inchado e ‘já ganhámos’ dos franceses, tínhamos uma série de contas antigas e recentes para corrigir. E aconteceu da melhor maneira possível. Tal como disse um amigo, também emigrante mas na Escandinávia:

Portugal ganhou; A França perdeu; A França perdeu com Portugal; A França perdeu com Portugal na França.

Mais lindo não poderia ser. Portugal, a terra dos trolhas dégueulasse a consumar o “Frexit” em pleno cœur futebolístico gaulês – afinal um aterro de traças. Imaginem como os nossos compatriotas radicados no hexágono terão ido hoje trabalhar :)

domingo, 3 de julho de 2016

A angústia dum algarvio antes dos penáltis

O Portugal-Polónia era um jogo que eu não queria.

Patrício defende remate de BlaszczykowskiEste jogo começou logo após o Portugal-Croácia dos oitavos-de-final, num bar junto do Vístula onde vi o jogo com mais dois Nunos e um cento de polacos que tinham ficado a borbulhar em cerveja depois do jogo deles com a Suíça. Misturámo-nos no meio deles com as nossas camisolas das quinas e vimos o jogo todo em sossego salvo quando nos saltava um palavrão da boca ao que eles achavam piada. Sentimos leves mas amigáveis provocações de que a jogar daquela forma íamos apanhar duas ou très batatas, que o Lewandowski estava a guardar-se para Portugal, que o Pazdan ia engolir o Cristiano mas tudo num registo tranquilo. Depois do apito final apertámos a mão a alguns fãs polacos e entre risadas não desejámos boa sorte uns aos outros. Abandonámos o bar sem problemas e voltámos para casa pensando ver os quartos-de-final naquele mesmo lugar.

Entretanto começaram alguns amigos polacos com os mind games, que eles iam ganhar e que não tínhamos hipótese ao que sempre respondi com o clássico e definitivo “falo depois do jogo”. Curiosamente ou talvez não, entre os meus colegas de equipa recebi zero comentários o que é prova de que as pessoas do futebol sabem respeitar-se nos momentos em que o acaso determina o confronto direto.

Talvez compreendessem que não seria um jogo fácil para mim por se defrontarem a minha Pátria e o meu país adotivo, a terra onde cresci e aquela onde resido. Foi um desconforto enorme durante os dias que antecederam o encontro pois queria a vitória de Portugal – sem hipocrisias – mas não queria a derrota da Polónia e os dois resultados eram incompatíveis. Imaginava a tristeza dos meus grandes amigos polacos que viviam com intensidade a ideia que a sua Seleção criou – foi a primeira vez que a Polónia se apurou da fase de grupos e disputava uns quartos – se caissem aos pés de Portugal, uma equipa que eles com alguma razão consideravam ao alcance. Imaginava se sentiria alguma represália porque o meu carro tem matrícula portuguesa e apesar de toda a gente no bairro me conhecer talvez um bêbado resolvesse aliviar a frustração danificando propriedade portuguesa. Imaginava a cara dos meus colegas do Inter Warszawa quando recomeçassem os treinos (se eventualmente o joelho concordar), chateados por ‘eu’ lhes ter roubado a ilusão de chegar às meias-finais. Não foi cómodo viver com essa guerra de sentimentos, de saber que a minha vitória e alegria significava a derrota e mágoa dos meus amigos.

Vi o jogo em terreno neutro, na casa dum amigo brasileiro entre portugueses e polacos, prefiri ser prudente e evitar problemas do que reclamar o meu direito de poder ver o jogo onde quisesse e bem entendesse. Nem eles se coibiram de festejar o golo do Lewandowski nem eu me abstive de saltar do sofá quando a bola chutada pelo Renato Sanches beijou as malhas. Na segunda parte o ascendente português fê-los calar a boca e no prolongamento o receio mútuo era tal que o único som que se ouvia era da cerveja a ser sorvida das latas. Mas quando vieram os penaltis um pensamento me assaltou: “Uai mãe! E se os gajos ganham, vou ter de os ouvir durante quanto tempo?”

Então pousei a lata na mesa em frente ao sofá, juntei a mãos em torno do nó daMisha no rescaldo bandeira que tinha enrolada ao pescoço e comecei uma ladainha minha, lançando aquele feitiço que só as gentes de Faro conhecem (azoura, azoura, maria tesoura) com o resultado que se conhece. As minhas azouras nunca falham!

Os dias seguintes foram de sossego, ninguém me falou do jogo, ninguém tirou desforço, ninguém mandou bocas. Só uma amiga com quem eu tinha combinado um almoço se desculpou com o trabalho e brincou com o facto de não ser dia para se encontrar com portugueses. Eles reagiram com relativo fair-play enaltecendo os seus jogadores enquanto lambiam as feridas agradecendo a prestação da sua seleção no Europeu, eu continuo a ratar unhas e a fumar que nem um forno até ao próximo jogo de Portugal. Tudo está como deve ser, ao cabo e ao resto.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A total falta de vergonha que grassa na imprensa desportiva portuguesa

13346626_10209412789898670_3954217130030368894_nO servilismo português é lendário, vem dos tempos bolorentos do salazarismo quando a doutrina ensinava que o português devia ser humilde e comedido. Nesses dias poucos eram os que tinham acesso à Universidade, os chamados estudos superiores, e a quem tirava o curso acrescentava-se um título ao nome - Doutor. É um uso que perdura e hoje, bem entrados no séc. XXI, os portugueses ainda chamam "Doutor" a um licenciado quer seja em Direito ou em Contabilidade ou até mesmo em Farmácia. Portugal é o único país europeu que trata por "Doutor" quem não é médico e os portugueses são os únicos cidadãos europeus que têm "Dr" antes do nome no cartão multibanco. Mais, faz distinção entre classes de licenciados pois os Srs. Engenheiros e Srs. Arquitetos têm direito a categoria própria que os distingue dos demais. É o hábito de olhar de baixo para cima, sempre modesto, sempre servil, sempre disposto a baixar as calças e prestar vassalagem aos "Doutores", aos que detêm o poder, aos maiores.

Felizmente esse costume vai-se acabando na sociedade portuguesa, seja porque af concorrência obrigou os portugueses a concluirem mestrados e doutoramentos para serem mais competitivos no mercado de trabalho e tal facto esvaziou de significado os ridículos "Doutores" de licenciatura, seja porque os ideais contemporâneos são outros e os jovens portugueses licenciados já não observam essa subserviência como obrigatória para a confirmação do seu estatuto. Contudo facilmente podemos constatar os inúmeros vestígios dum lamber de botas nojento, exemplos de uma atitude constante de veneração ao Doutor. Pego num setor essencial da sociedade portuguesa - o desporto - e tentarei demonstrar como a imprensa desportiva se transformou num instrumento de bajulação e propaganda.

O jornal "A Bola" é conhecido por ser próximo do clube com mais adeptos em Portugal. Já no tempo em que era chamada "A Bíblia", nomes como Carlos Pinhão, Alfredo Farinha ou Aurélio Márcio faziam parte dum autêntico plantel "encarnado" mas que praticava jornalismo isento, não se coibindo de criticar o seu clube quando achavam justo. Não era o triste pasquim assalariado que hoje publica manchetes mentirosas para poder vender mais mil ou dois mil exemplares, uma publicação que não tem pejo em colocar uma patranha na primeira página só porque tal torna o jornal mais apetecível. No dia em que esta manchete sobre José Mourinho foi publicada, já se sabia que era falsa, que era o seu antigo adjunto Ricardo Formosinho que iria fazer parte do seu projeto para o Manchester United. Nem 24 horas volvidas, o mesmo jornal publica a história verdadeira mas em páginas dos fundos e sem qualquer menção à gorda mentira que tinha feito caixa na edição anterior. Mas a propaganda já tinha sido feita. Do jornal "Record" não vale a pena falar pois a cartilha dos Marcelinos, Cartaxanas, Delgados e Manhas tem uma inflamada orientação lampiã bem conhecida, fomentada desde que passou a fazer parte do grupo COFINA (Correio da Manhã) e que não engana ninguém, tal como o "O Jogo" sendo que, vestindo de cor diferente, este tem a virtude de nunca se ter arvorado em orgão informativo neutro.

A bajulação tem contornos mais discretos e faz-se ver em mensagens subliminares, das quais retiro quatro exemplos avulsos do primeiro treino de Cristiano Ronaldo com os seus companheiros da Seleção Nacional antes do jogo particular final com a Estónia. O leitor que tire as suas conclusões.

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Vivemos tempos em que as sociedades são facilmente manipuláveis porque os indivíduos se esqueceram de pensar pela sua própria cabeça. Preferem consumir pensamentos pré-congelados do facebook e livros de auto-ajuda ou acreditar em tudo o que a comunicação social afirma. As pessoas demitiram-se da sua obrigação de pensar e preferem que os outros pensem por elas porque assim é mais cómodo. Eu recuso-me a alinhar no rebanho de néscios alimentados a soro pelos media e recuso aceitar a verdade que os bajuladores nos querem impingir, por esse motivo decidi deixar de consultar publicações desportivas. Se já não as comprava porque não moro em Portugal, agora nem com o meu clique cibernético contam.

Os políticos manipulam e os portugueses votam neles. Os media manipulam e os portugueses acreditam neles. E admiram-se que haja cada vez mais portugueses a sair de Portugal?

E uma última questão. Que parangona daria a fotografia abaixo se o protagonista tivesse mais cabelo...

João Mário

PS – E a propósito de João Mário, o que dizer desta “notícia” venenosa? Foi o pai do jogador que se lembrou de contactar o jornal pedindo para ser entrevistado? Foi o jornal que telefonou para o familiar do jogador? João Mário renovou em agosto de 2015 até 2018, ainda não passaram 10 meses!! Agoram digam que a imprensa desportiva portuguesa não tem uma agenda…

sábado, 28 de maio de 2016

De como a zona mais degradada de Varsóvia consegue recuperar um blogue

clip_image001Pode até ser um impulso pontual causado pela subida sazonal de temperatura, o tempo quente transforma esta gente, mas decidi reativar o blogue. Já são quase nove anos de relatos sobre a vida dum algarvio na Polónia e nove anos de escrita merece mais do que uma permanência em suporte de vida até que num dia mais feio se decida desligar a máquina. Portanto, toca a escrever.

Esta vontade toda também está relacionada com um passeio a pé que fiz há dias pela zona de Praga em Varsóvia, Nova Praga para ser mais preciso. Encontrei-me ao princípio da tarde com a Kasia, uma amiga residente naquela região da cidade, fomos a um bar local pedir café e como o dia estava bonito e convidava a caminhar resolvi aceitar a proposta dela e percorri ruas e visitei prédios cheios duma história que me fascina e não deixa de me impressionar, entre eles um sinistro prédio de gaveto situado num dos mais sinistros bairros da Cidade Capital (a esquina das ruas Strzelecka e Środkowa). Costumo ver o dito prédio com alguma frequência porque fica no caminho para o Tesco onde vou frequentemente às compras e já me tinha perguntado sobre o passado do edifício, erigido na segunda metade da década de 30, pois a sua traça mais austera distingue-se das redondezas devido à ausência de adornos. Aprendi que entre 1944 e 1948 foi uma repartição do NKWD, o Ministério do Interior da União Soviética, onde eram aprisionados, interrogados e em alguns casos torturados elementos considerados perigosos para o regime comunista, por exemplo os “Soldados Amaldiçoados” – grupos autónomos de guerrilha e resistência contra a ocupação comunista na Polónia. Soube que na cave do edifício funcionava a prisão do complexo, onde ainda se podem visualizar inscrições feitas nas paredes pelosclip_image002 prisioneiros, mensagens que se tornaram documentos reais do estado de espírito destes mártires enquanto esperavam pela transferência para o campo de Rembértów, localizado na franja leste de Varsóvia, ou enquanto não eram sumariamente executados com um tiro na nuca, modo preferido pelas autoridades comunistas de eliminar os agentes incómodos ao regime.

No canto oposto se pode ver o Palacete Konopacki, construído por um fidalgo polaco na segunda metade do séc. XIX e que dispunha de uma zona circundante tão vasta que a cidade decidiu comprar uma área desse terreno para poder construir uma escola. Um mural denominado “Warsaw Fight Club” ilustra a parede dum bloco de apartamentos incrustado num arruinado complexo urbanístico. Pátios de gatos e ervas daninhas, formosas raparigas de palavreado indecente empurram carrinhos de bebé, rapazes sentam-se à sombra nos beirais a fumar e a beber cerveja, um vitral anuncia um solário para homens. Em Praga o comum mortal sente-se deslocado, desconfortável, com a impressão de que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento. O peso da vivência dos habitantes sente-se em cada montra de loja (das que não têm persianas de ferro de alto a baixo) ou nos olhares que os clientes das esplanadas lançam à passagem dum tipo de cabelo esquisito que fala uma língua desconhecida.

Através do conhecimento intrínseco da Kasia, ela que é quase uma ativista da causa Praguiana, fiquei a saber que muitos jovens nunca cruzaram o rio para a margem ocidental e nunca foram, por exemplo, à rua Nowy Świat – a rua mais nobre da Capital – ou passearam junto ao Palácio da Cultura. Não o fazem por não se sentirem confortáveis fora do seu ambiente, porque as clip_image003pessoas  “do lado de lá” vestem-se e falam de maneira diferente, porque tudo é mais caro. A chegada do metropolitano a Praga não diluiu sobremaneira as diferenças sociais entre Praga e o resto da cidade, mesmo que no lado oeste de Varsóvia haja zonas que não são menos decrépitas que Praga como Jelonki ou alguns bairros de Włochy. Muitas pessoas não usam o metro porque é complicado ou porque não têm o que fazer no outro lado do rio. Vêem na televisão notícias sobre Varsóvia, assistem a programas filmados em Varsóvia mas sentem que tudo tem lugar em outra cidade, numa realidade diametralmente oposta aos seu quotidiano quando afinal as coisas acontecem a quinze minutos de suas casas.

Depois de termos voltado ao bar onde nos encontámos porque havia um bolo de banana que me tinha piscado o olho e tive de voltar para o trincar, despedi-me da Kasia agradecendo o passelo e a sempre bem-vinda aula de história e apanhei o autocarro para Tarchomin. Aproveitei para digerir as impressões e concluí que em Varsóvia há tanto para contar e que a Polónia ainda consegue me surpreender de tal maneira que seria um pecado fechar o blogue.

Assim sendo, mãos à obra!