quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Dona Polónia e os Seus Vizinhos, vol. 3 - Ucrânia

Chegando o inverno e logo a minha mãe escreve-me mensagens desesperadas, inflamadas pelas notícias de vagas de frio polar que assolam a Europa Central, a Polónia, pessoas que morrem de frio nas ruas e em casa, cortes de energia que deixam habitantes deste inóspito país sem eletricidade para os aquecedores, como estás meu filho, a mãe está tão preocupada, ai, tu agasalha-te bem e não te constipes. Ralações duma mãe que cresceu a nadar entre atuns na tépida costa algarvia e não concebe a ideia de pôr o tacho da sopa na varanda para que ela congele e se mantenha capaz de se comer mais tarde. Enquanto não a trouxer ao T2 de Tarchomin ela não descansa.

É no conforto do T2 de Tarchomin, janela com vista norte para a rua Myśliborska e assurpreendentemente (para a estação) verdes matas da Światowida ao fundo, que leio as inquietantes notícias que vêm da vizinha Kiev, quase a 800 km de Varsóvia mas de grande proximidade afetiva com a Polónia. Notícias sobre um povo saturado da tirania e crueldade dos seus governantes, um povo oprimido e reprimido durante gerações, um povo castigado por conflitos e guerras desde a 'polonização' do tempo da República das Duas Nações do séc. XVII até à mais recente U.R.S.S. passando por situações inimagináveis como a grande fome do Holodomor e o desastre nuclear de Chernobyl. Um povo, enfim, com muitas similaridades com o Polaco, similaridades essas que inspiram um olhar terno mas receoso por parte dos seus vizinhos a Ocidente.

Tal como a Bielorrússia, a Ucrânia é vista pelos polacos com uma simpatia talvez derivada do passado penoso dos ucranianos, sabendo nós que o polaco perde-se por uma boa história de martírio e sofrimento. A proximidade, não sendo exatamente recíproca porque do lado ucraniano não existe tanta afeção pela Polónia - provavelmente devido a feridas abertas pela limpeza étnica e pelo genocídio que tiveram lugar a meio do século passado, feridas que a Polónia tratou com os benefícios ganhos com a viragem a Ocidente, com o progresso conquistado pela conversão à economia de mercado e à integração na UE mas que a Ucrânia continua a lamber, talvez ciumenta por não ter os 'entretenimentos' que os vizinhos polacos -, tem dado frutos interessantes como foi a organização conjunta do Campeonato da Europa de Futebol em 2012. Mesmo assim, e como testemunhei neste mesmo blogue, sentiram-se imensas diferenças entre a organização polaca, muito mais agilizada, e a ucraniana, permanentemente afogada em burocracias. Há uma ligação histórica entre as duas nações que não é completamente pacífica mas que foi atenuada na última década do séc. XX após a independência da Ucrânia e a tomada de posição do recém-empossado presidente ucraniano Leonid Kravtchuk (recusa em integrar a CEI, afastamento militar e económico de Moscovo) e durante o mandato de Viktor Yushchenko (aproximação à UE e NATO). Contudo, os acontecimentos recentes na Praça da Independência kievita vieram exaltar os sentimentos anti-Kremlin da Polónia e os apelos à resistência e punição dos reponsáveis políticos ucranianos são agora uma constante em Varsóvia. A Polónia exalta o direito à liberdade dos ucranianos, mobiliza a opinião pública mundial contra a violação dos Direitos Humanos perpetrada pela Administração, sensibiliza os agentes internacionais para a gravidade da situação. É a alma eslava que se junta em prol duma causa comum, o cordão umbilical que une polacos e ucranianos que, apesar de afetado pelos danos causados em anos antigos, não só não foi destruído como tem-se fortalecido.

Também eu lanço uma palavra de ânimo aos manifestantes ucranianos que lutam por liberdade e democracia, mesmo que estejam à beira duma guerra civil. No mundo já não há lugar para déspotas e quem ordena isto contra a sua própria carne e sangue não merece mais do que justiça popular.
 
свобода для України!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Perspetiva


Por intermédio de uma amiga conheci o Paweł, um rapaz de idade próxima dos dezasseis anos oriundo de perto de Olsztyn, a terra dos lagos, no nordeste da Polónia. Deu-me a ideia dum rapaz abatido, confortado com a vida que tem, sem grandes planos para o futuro nem aparente vontade em fazê-los mesmo que, como qualquer um de nós, desconhecesse se tem mais um ano de vida pela frente, mais dez, mais trinta ou mais sessenta. O Paweł tem um sorriso largo mas que não me pareceu franco, foi educado quando nos cumprimentou (a mim e à minha amiga) porém com ar de quem assim foi ensinado, a cumprimentar e a falar bem às pessoas mesmo se não tivesse vontade nem interesse. O pai do Paweł veio receber-nos muito contente por termos vindo, explicou muitas coisas sobre a família e a sua história, abria os braços para frisar a ideia e dar detalhe à narrativa. O Paweł não parecia impressionado com a lenga-lenga, até tinha aspeto de estar incomodado com aquilo tudo, com tanto pormenor, como se a sua privacidade estivesse a ser devassada pelo pai que contava a vida toda a estranhos, virava a cabeça ou sorria educadamente para não nos mandar à fava. Brilhavam-lhe os olhos quando falava de automóveis, de mecânica, do sonho de ter uma garagem própria e arranjar motores e suspensões. O pai reparava no desconforto do filho mas continuava a historiar, hesitava nos momentos mais difíceis, escolhia bem as palavras apesar de ser uma pessoa de formação académica modesta, escapava-se-lhe um impropério quando mencionava aspetos que ele considerava mais revoltantes mas rapidamente emendava a mão, pedia desculpa meio envergonhado e retomava o raciocínio procurando episódios mais alegres para aliviar o ambiente.

O Paweł é um doente oncológico, tem uma perna amputada, um cancro que já está localizado nos pulmões e tem metásteses em cada centímetro cúbico do corpo, está por semanas ou meses. Este rapaz de dezasseis anos nunca mais jogará futebol com os amigos da Mazúria, nunca limpará as mãos em desperdício depois de reparar um amortecedor, nunca sentirá aquele mel quente que nos invade quando se faz amor com uma mulher pela primeira vez, nunca terá uma moca daquelas marafadas depois dum charro, não lhe será dada a oportunidade de fazer merda e aprender com os erros, não lhe foi dado o famigerado 'livre arbítrio' que os católicos tanto gostam de mencionar como razão para os atos irracionais do Homem. Nada. Ao Paweł não lhe foi dado nada, foi-lhe arrancada uma perna, o cabelo, as ilusões, os sonhos, a inocência. O Paweł tem uma agulha de soro espetada no abdómen e uma espada cravada no coração, sabe que está a morrer mais depressa que os outros meninos da idade dele mas nem tem consciência que nunca mais voltará à sua casa, nunca mais brincará no seu quarto, nunca mais dormirá na sua cama.

Discutem-se penáltis e foras de jogo, lamenta-se que o Philip Seymour Hoffman tenha morrido tão novinho, coitado, fazem-se contas ao orçamento para pagar os luxos que são a internet, o telemóvel, o seguro do carro, umas calças de ganga novas, um blusão para a neve, lamenta-se chorosamente que ele é insensível e não lhe dá atenção ou que ela é a rainha do drama e incapaz de pensar com lógica. Enquanto isso o Paweł definha.

Nunca o cliché 'pôr as coisas em perspetiva' foi tão bem aplicado como quando conheci o Paweł, um rapaz que provavelmente não verá as flores frescas da primavera deste ano, não gozará a sombra duma árvore este verão, não terá mais nenhum Natal.

Precisamos todos de ganhar tino. A vida são dois dias e hoje já conta.