sábado, 28 de maio de 2016

De como a zona mais degradada de Varsóvia consegue recuperar um blogue

clip_image001Pode até ser um impulso pontual causado pela subida sazonal de temperatura, o tempo quente transforma esta gente, mas decidi reativar o blogue. Já são quase nove anos de relatos sobre a vida dum algarvio na Polónia e nove anos de escrita merece mais do que uma permanência em suporte de vida até que num dia mais feio se decida desligar a máquina. Portanto, toca a escrever.

Esta vontade toda também está relacionada com um passeio a pé que fiz há dias pela zona de Praga em Varsóvia, Nova Praga para ser mais preciso. Encontrei-me ao princípio da tarde com a Kasia, uma amiga residente naquela região da cidade, fomos a um bar local pedir café e como o dia estava bonito e convidava a caminhar resolvi aceitar a proposta dela e percorri ruas e visitei prédios cheios duma história que me fascina e não deixa de me impressionar, entre eles um sinistro prédio de gaveto situado num dos mais sinistros bairros da Cidade Capital (a esquina das ruas Strzelecka e Środkowa). Costumo ver o dito prédio com alguma frequência porque fica no caminho para o Tesco onde vou frequentemente às compras e já me tinha perguntado sobre o passado do edifício, erigido na segunda metade da década de 30, pois a sua traça mais austera distingue-se das redondezas devido à ausência de adornos. Aprendi que entre 1944 e 1948 foi uma repartição do NKWD, o Ministério do Interior da União Soviética, onde eram aprisionados, interrogados e em alguns casos torturados elementos considerados perigosos para o regime comunista, por exemplo os “Soldados Amaldiçoados” – grupos autónomos de guerrilha e resistência contra a ocupação comunista na Polónia. Soube que na cave do edifício funcionava a prisão do complexo, onde ainda se podem visualizar inscrições feitas nas paredes pelosclip_image002 prisioneiros, mensagens que se tornaram documentos reais do estado de espírito destes mártires enquanto esperavam pela transferência para o campo de Rembértów, localizado na franja leste de Varsóvia, ou enquanto não eram sumariamente executados com um tiro na nuca, modo preferido pelas autoridades comunistas de eliminar os agentes incómodos ao regime.

No canto oposto se pode ver o Palacete Konopacki, construído por um fidalgo polaco na segunda metade do séc. XIX e que dispunha de uma zona circundante tão vasta que a cidade decidiu comprar uma área desse terreno para poder construir uma escola. Um mural denominado “Warsaw Fight Club” ilustra a parede dum bloco de apartamentos incrustado num arruinado complexo urbanístico. Pátios de gatos e ervas daninhas, formosas raparigas de palavreado indecente empurram carrinhos de bebé, rapazes sentam-se à sombra nos beirais a fumar e a beber cerveja, um vitral anuncia um solário para homens. Em Praga o comum mortal sente-se deslocado, desconfortável, com a impressão de que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento. O peso da vivência dos habitantes sente-se em cada montra de loja (das que não têm persianas de ferro de alto a baixo) ou nos olhares que os clientes das esplanadas lançam à passagem dum tipo de cabelo esquisito que fala uma língua desconhecida.

Através do conhecimento intrínseco da Kasia, ela que é quase uma ativista da causa Praguiana, fiquei a saber que muitos jovens nunca cruzaram o rio para a margem ocidental e nunca foram, por exemplo, à rua Nowy Świat – a rua mais nobre da Capital – ou passearam junto ao Palácio da Cultura. Não o fazem por não se sentirem confortáveis fora do seu ambiente, porque as clip_image003pessoas  “do lado de lá” vestem-se e falam de maneira diferente, porque tudo é mais caro. A chegada do metropolitano a Praga não diluiu sobremaneira as diferenças sociais entre Praga e o resto da cidade, mesmo que no lado oeste de Varsóvia haja zonas que não são menos decrépitas que Praga como Jelonki ou alguns bairros de Włochy. Muitas pessoas não usam o metro porque é complicado ou porque não têm o que fazer no outro lado do rio. Vêem na televisão notícias sobre Varsóvia, assistem a programas filmados em Varsóvia mas sentem que tudo tem lugar em outra cidade, numa realidade diametralmente oposta aos seu quotidiano quando afinal as coisas acontecem a quinze minutos de suas casas.

Depois de termos voltado ao bar onde nos encontámos porque havia um bolo de banana que me tinha piscado o olho e tive de voltar para o trincar, despedi-me da Kasia agradecendo o passelo e a sempre bem-vinda aula de história e apanhei o autocarro para Tarchomin. Aproveitei para digerir as impressões e concluí que em Varsóvia há tanto para contar e que a Polónia ainda consegue me surpreender de tal maneira que seria um pecado fechar o blogue.

Assim sendo, mãos à obra!