segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Triunfar!

Agora que acabei o último trabalho de 2012, agora que olho pela janela e vejo o sol a pôr-se por trás do Palácio da Cultura e da Ciência, agora que posso descomprimir e apontar agulhas para a passagem do ano, também posso passar em revista o ano que hoje finda e avaliar se foi bom ou não.

Foi mais ou menos.


  • Vivi o meu segundo Europeu de Futebol depois do 2004 português. Varsóvia e o reservado e pouco emotivo povo polaco não resistiram ao carnaval do futebol e foram contagiados pelo vírus da bola, a Cidade Capital apresentou a maior Fan Zone da Europa, como era de esperar tive a visita de munines que quiseram acompanhar a seleção e demos um saltinho à Ucrânia para marcarmos presença na estréia da Equipa das Quinas na competição, vivendo aventuras nesses dias que foram aqui contadas e relatadas;
  • Atingi o patamar mais elevado possível em algumas das minhas atividades profissionais. Professor na Universidade de Varsóvia, uma das mais conceituadas do país e da Europa, um marco de qualidade das minhas competências e uma linha de inigualável prestígio no meu currículo, um filho de Faro (curiosamente não o único) a elevar o nome da cidade natal. DJ no Platinium, provavelmente a discoteca mais concorrida e reputada de Varsóvia, ponto de encontro da nata da cidade e onde só os nomes maiores da terra têm lugar. Aquela cabina foi minha, aquele chão foi meu, aquele povo todo entregou-se totalmente a mim e tal há-de acontecer novamente. Durante o set lembrei-me muitas vezes da malta do Largo da Caganita e da Escola do Carmo, eles estavam todos ali comigo na cabina, eles também tocavam comigo;
  • Assisto com mágoa ao envelhecimento da família, apesar de andarem rijos e lúcidos. Nota-se o peso dos anos nas expressões faciais, no discurso, na ambição, mais saudosistas e menos efetivos. Reflexo do conta-quilómetros mas também da situação atual em Portugal que contamina todas as esferas da sociedade, uma pena mas também uma inevitabilidade;
  • O regresso à casa de partida no campo das relações pessoais, as coisas complicaram-se nos últimos meses e vejo-me de novo no mercado de transferências com a trouxa às costas. Não vai ser pior do que em 2008 quando me separei da Iza, nessa altura não tinha trabalho, não falava a língua e quase não conhecia ninguém, mas é sempre um passo atrás no plano e no projeto. Ainda assim, sinto-me com mais ilusão que nunca, com grande vontade de arregaçar as mangas, ir para a luta e arranhar-me todo até conseguir alcançar aquilo a que sempre me propus desde o longínquo dia 8 de outubro de 2007 quando cruzei a fronteira germano-polaca: Triunfar.
Amigo leitor, que 2013 seja o ano do seu... digo, do nosso triunfo. E que os nossos inimigos se conservem bem de saúde para poderem assistir ao show.

Saúde e sorte.

domingo, 30 de dezembro de 2012

A carpa – símbolo gastronómico do Natal polaco (e não só)

Carpa Na ceia de Natal polaca aparecem coisas que não lembram ao diabo! Comparando com a mesa de consoada portuguesa, os polacos destacam-se por apresentarem mais variedade - uma dúzia de pratos diferentes segundo a tradição -  sendo que nenhum é de carne e a maioria é composta por diferentes tipos de peixe. A ceia natalícia neste país não é uma oportunidade para a refeição lauta e bem regada tão característica na nossa terra porque, tradicionalmente, não se colocam bebidas alcoólicas na mesa. Outra situação na qual a consoada é diferente é na consensualidade que os pratos reúnem, em Portugal ninguém discute a bacalhauzada com batatinha, couve e grão, às vezes um ovo para enricar o banquete, porque é uma especialidade ao gosto de todo o português, o fiel amigo é tradicional do Natal mas acompanha-nos durante todo o calendário como todo o (nosso) prazer. No caso polaco não é bem assim, o peixe típico de Natal – a carpa – também gera consenso mas negativo: Ninguém gosta de carpa.

A carpa é um peixe originário da Ásia e foi introduzido no rio Danúbio há coisa de 2000 anos, não se sabe (ou não importa para aqui saber) qual foi o trajeto do teleósteo até chegar frita à mesa dos polacos (e dos alemães, checos e eslovacos) mas sabe-se que é um peixe que não goza de boa reputação neste país. É considerado um peixe sujo e essa fama advém de viver em rios e lagos, muitos deles poluídos, ganhando assim um gosto a lodo que só consegue ser neutralizado depois de muita depuração. Por isso é comum comprar-se carpas dois ou três dias antes da véspera de Natal e conservá-las numa tina de água doce para que a sua carne perca progressivamente o sabor a lama, o que nem sempre é conseguido e que explica a aversão que muitos polacos têm  pelo seu prato emblemático de Natal, amplificada pela notória falta de jeito que os polacos têm para lidar com espinhas de peixe. A consoada deste ano passei-a por cá e testemunhei a diferença que há entre uma carpa asseadinha e outra que não se lavou porCarpa frita dentro o suficiente, o cheiro e o travo a lama no primeiro caso mesmo que eu comesse sem reclamar a posta que me serviram, e a carne limpinha se bem que sem sabor distinto – a carpa é servida frita com batatas assadas mas sem azeite, vinagre, alhinho ou limão. Em ambos os casos foi elogiada a minha perícia no manejo das espinhas e no aproveitamento que fiz da posta, os meus colegas comensais deixavam mais de metade do peixe no prato, bem porque não sabiam separar as espinhas como também porque não se queriam dar a tanto trabalho para comer aquela coisa ruim.

Por isso fiquei a pensar no porquê dos polacos terem elegido para símbolo da consoada uma refeição de que quase ninguém gosta e que torna a ocasião num fastio em vez de ser um prazer. A Karolina contou-me que tal se deve ao impedimento que a Igreja Católica decreta ao consumo de carne na quadra natalícia obrigando os polacos a pensar em alternativas, sendo o peixe a mais direta. Como o mar não está próximo de todos os polacos, estes voltaram-se para os seus muitos rios e lagos onde há peixe com fartura, deitaram os anzóis ao leito e começaram a desbastar cardumes de carpas dado que este é o peixe que se deixa apanhar com mais facilidade. É uma explicação aceitável mas insuficiente para que eu comece a ter gosto em ver uma posta de carne frita na minha mesa de consoada. Mas podia ser beeeeeem pior, a apenas um par de horas, na vizinha República Checa o jantar típico de Natal é sopa de cabeça e vísceras de carpa ;)

O ganso assado no forno no almoço de Natal? Ah, isso é outra conversa…

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

ECAS


TAFKAP - The Artist Formerly Known As Prince


Amigo leitor, antes de começar a ler o artigo deixe-me que lhe diga que este vai ser uma daquelas prosas dramáticas sobre o inverno polaco, tema sobre o qual já dissertei noutras ocasiões mas que me é sempre chegado, particularmente quando caem as primeiras neves. Portanto considere-se avisado, se não quiser continuar a ler mude de canal que eu compreendo, ficamos amigos à mesma, só que eu tenho mesmo de escrever sobre estas coisas para as tirar dos ombros. Se soubesse o que nós passamos nesta terra cada vez que muda a estação compreenderia todo este barafustar.

Ontem à tardinha ameaçou, vi que o asfalto estava esbranquiçado e que as rachas do pavimento tinham sido preenchidas por uma pasta branca que dava a sensação de frio. Não fiquei muito contente com o panorama porque tinha jogo de futebol à noite e imaginei um arranque a diesel, uma carga de trabalho até alcançar o nível e agilidade para jogar como deve ser. Pensei também na quantidade de café que tinha em casa, se era altura de reabastecer o armário porque com a temperatura a descer há um série de molezas que tomam conta do corpo, tiram a vontade e esta só consegue ser reposta com a colaboração de abastadas chávenas de café com leite, sem açúcar para o estímulo ser ainda maior. Entretanto a noite caiu e saí de casa para o meu jogo, o termómetro do carro registava -0,5º C e eu pensava se ia jogar de luvas ou não. Acabei por deixar as luvas no saco, ignorei o briol, cerrei os dentes e saltei para a arena, corri que nem um cavalo para não sentir frio e a estratégia deu resultado - não dei pelo frio e ganhámos 3-0 com dois golos meus, um de pé esquerdo e outro de calcanhar (peço desculpa pela cagança mas tinha de dizer isto!). Voltei para casa e inchado e arcado e dormi o sono dos justos.

Hoje já não houve ameaças veladas nem pré-avisos, a neve cascou e ainda casca severamente na Cidade Capital. As pessoas esperam pelos autocarros enfaixadas em cachecóis e gorros atafulhadas em grossos blusões ou volumosos sobretudos, sai-lhes um ar duro da boca e dos narizes rosados que lhes dá um aspeto ainda mais triste e enfermo. Sinto a neve misturar-se com o gel e começo a teorizar sobre os gorros e couros cabeludos dos polacos, se eles usam o gorro porque têm o cabelo ralo e isso faz-lhes frio na gorra ou se cortam o cabelo rente para poderem usar gorro e não terem frio na gorra, se eles não usam gel porque já sabem que o cabelo fica empastado quando neva ou se não usam nada porque o cabelo deles é tão fraquinho que qualquer leva de espuma da Garnier arranca-lhes madeixas inteiras.


No meio desses pensamentos passei o primeiro compromisso do dia e sentei-me para o pequeno-almoço, li as frescas e fiquei sabendo que Alvalade mete água mesmo sem o Sporting jogar. Aliás,  o ECAS - Equipa Conhecida Anteriormente por Sporting. É esta a designação que escolhi para aquele bando de moços que jogam à bola com camisolas verdes e brancas às riscas porque aquilo não tem nada a ver com Sporting, não fazem esforço, não se dedicam, a devoção é inteiramente da massa adepta e de Glória só me lembro da mulherzinha que vendia abacates ao pé da casa da minha avó. O emblema também não tem relação nenhuma com a realidade, não merecem ter um leão rampante ao peito mas antes uma onça velha e magra, caquética, que erra pelos relvados portugueses e europeus numa vexatória demonstração de decadência.

Arrumei o computador e peguei no copo do café, sentam-se duas adolescentes na minha mesa, sacam dos telemóveis e comentam fotografias do facebook, comentam os penteados das colegas, comentam os comentários. Eu assopro o café para o arrefecer e olho à minha volta, centenas de pessoas a caminho dos seus trabalhos. Passa um rapaz com um cachecol da Legia, joga hoje à noite em Wrocław na casa do campeão polaco para defender uma vantagem de sete pontos sobre o segundo, começo a pensar se não farei melhor em ver o jogo da Legia do que o do ECAS mas logo penso que não, que isso seria como trocar a esposa que está doente e bichada por uma amante mais jovem e vibrante. "Mas trata-se disso mesmo, qualquer homem faria o mesmo!", penso eu procurando desculpas para a facada no matrimónio, para justificar a preferência por uma mulher mais nova de pele mais clara e luzidia, cheia de vida e jovialidade, fogosa na cama e louca na pista de dança. Para quê seguir com este saco de ossos a que alguém chama de equipa, este feixe de misérias nas palavras de Guerra Junqueiro, um esfregão futebolístico que me envergonha quando saímos de braço dado? As raparigas riem alto, guincham como dobradiças de portas velhas, não respeitam a minha angústia, não percebem a minha dor, não vêem o meu calvário.

Lá fora a neve segue impiedosa, pune Varsóvia pelo verão radioso que viveu este ano. Tal como eu vou ser punido mais logo à noite pela má-sorte de ter nascido lagarto.



ps - Acredite, caro leitor, que eu queria escrever sobre o inverno polaco quando me sentei ao computador, mas entretanto outros pensamentos me assaltaram e deu nisto que se lê. Desculpe lá...