quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Postais da Polónia - 19

Parece mentira, e ainda bem para a saúde do blogue, que ainda há coisas e imagens que me surpreendem ao fim de mais de seis anos de Polónia. Abancado com a Patrycja no Starbucks da Plac Bankowy (Praça do Banco, nome herdado do extinto Banco da Polónia cuja sede foi lá erguida no século XVIII), canecas de café aromatizado com leite entre as palmas das mãos, sorvíamos a nossa mistura enquanto comentávamos trivialidades em português, olhávamos para a rua pela janela e víamos as pessoas caminhando em passo rápido tentando fintar o frio. Nesse exercício de observação sociológica parei os meus olhos num objeto que não tinha visto nem reparado até então, uma espécie de fogareiro metálico colocado no passeio e cercado por baias.

A Patrycja assumiu o papel de cicerone de História Polaca e contou-me que tal fogareiro tornou-se comum no país durante o inverno de 1981, ano em que foi imposta a Lei Marcial na Polónia. O koksownik começou a ser instalado nas paragens de autocarro e elétrico nos meses mais frios do ano para aquecer os passageiros que esperavam transporte, hábito que ainda se mantém em Varsóvia não obstante as ditas estruturas se terem modernizado e tornado a espera mais confortável, bem como em locais onde se costumam concentrar sem-abrigo. Feito de ferro e usando um carvão especial denominado coque, tornou-se um objeto evocativo desses tempos cinzentos de repressão, funcionava então como um oásis de calor no meio de tanto gelo, um abrigo, quase como um teto onde as pessoas se podiam juntar e consolar. Ver aquele cesto de ferro atulhado em carvão numa das mais nobres zonas de Varsóvia causou o efeito contrário, uma gota de fealdade num largo tão bonito, uma sombra do passado que insiste em ficar presente, um testemunho do sofrimento que constitui o esqueleto da história recente da Polónia.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A neve, essa filha duma magana

Passou o Natal, época na qual geralmente já se fizeram sentir rijos frios, e também a passagem de ano. Passou até o Dia de Reis e as parvas das gralhas continuavam à procura de bichinhos para comer, pulando alegremente por cima das folhas arrancadas das árvores pelos ventos de outono. Passaram 20 e tal dias desde o solstício que assinala a entrada no longo túnel negro do inverno e nem uma folipa de amostra, simpáticos raios de sol incidiam diariamente sobre a Cidade Capital transmitindo toda a força da sua energia, contagiando o cidadão com o seu vigor, conferindo-lhe vitalidade, dando vida. Foi belo e parecia querer prolongar-se para lá dos limites que a cronologia impõe.

Mas tudo o que é bom tem fim e resulta que, mesmo atrasada e indesejada, a neve acabou por aparecer e polvilhar Varsóvia com finíssimos filetes de água gelada que prejudicam o andamento de pessoas e veículos. Quase dez minutos gastos hoje de manhã só para a retirar da capota, do pára-brisas, dos retrovisores e faróis, das janelas e do capô. Hoje vai ser o meu primeiro treino de futebol debaixo de neve, as merdas a que um gajo já com idade para ter juízo se submete em nome duma paixão. Luvas, colãs, protetores de pescoço e gorro, vou parecer um jogador da seleção das Ilhas Faroé mas essa não há-de ser a figura mais triste que fiz (e farei) na vida.

A neve. Sentia tantas saudades dela como tenho saudades de ter papeira.


domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio. Nosso.

11 de janeiro de 1994. O Sporting Clube de Portugal organizou um jogo de futebol entre a sua equipa principal e um combinado de jogadores de diversas nacionalidades para ajudar Sergei Cherbakov, jovem futebolista leonino que tinha ficado paraplégico na sequência de um acidente de viação. Esse combinado de jogadores designado ‘Resto do Mundo’ era composto por elementos da nata do futebol mundial na altura e que eram amigos de Cherba, caso de Igor Shalimov, figura de proa do Inter Milão. O desafio foi presenciado por mais de 20.000 espetadores e terminou com a vitória por 2-1 para o Sporting, a maior ovação do público não foi para o homenageado Cherbakov nem para os marcadores dos golos leoninos Nélson e Porfírio. Foi para o capitão da equipa do Resto do Mundo aquando da sua substituição ainda no decorrer da primeira parte. Quem era? Eusébio.

Como jovem adepto sportinguista e assistindo ao jogo pela televisão, ver Eusébio sair do solene relvado do Estádio de Alvalade debaixo de uma chuva de aplausos e posteriormente ouvi-lo dizer que tinha tido todo o prazer em vir a Alvalade ‘dar um abraço de solidariedade ao Cherba’ calou-me fundo. O maior símbolo do rival, a figura do clube cuja filosofia define o meu conceito de ódio não teve problemas em, aos 52 anos, calçar de novo as chuteiras para se associar a uma iniciativa de cariz sportinguista. Percebi então que Eusébio era um benfiquista diferente, um benfiquista acima das querelas clubísticas, um benfiquista global. Passou a merecer a minha admiração e respeito.

Não sou da era em que Portugal só era falado no estrangeiro por Amália e Eusébio mas não posso ignorar o tremendo contributo que o cidadão Eusébio da Silva Ferreira deu para o reconhecimento do meu país. Muita gente sabe o que é Portugal graças a Eusébio e isso coloca-o ao lado dos maiores portugueses da história como a mencionada Amália, Saramago ou Vasco da Gama.

Eusébio tornou maior a minha Pátria. Fez mais pelo bom nome de Portugal que todos os políticos, todos os empresários, todos os governantes do século XX e XXI juntos. Sempre sem reivindicar protagonismo, sempre cultivando amizades, sempre com um amor extremo pela sua terra. E por isso eu, insignificante sportinguista, curvo-me ante o seu gigantesco nome. Que descanse em paz, Pantera Negra.

O King

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Peúgos

Diz o povo professor que ‘a necessidade aguça o engenho’. Não sei se por uma questão de necessidade, parece-me ainda não ser o caso, se por brio, uma das coisas que aprendei a fazer no distante ano 2000 (Beto Acosta, Beto Acosta, és o nosso matador. Matadooooor! Matadooooor!) quando me mudei para a minha casa atingindo o sonho de morar sozinho foi cerzir peúgos. Esse engenho adveio do enorme prazer que eu sempre tive em andar descalço ou de peúgos em casa, coisa severamente verberada pela minha mãe enquanto estive aninhado sob a telha dela, provavelmente porque ignorava tal prazer por, sendo mulher e senhora, não lhe ficar bem patinhar as assoalhadas de joanete ao léu. Ela justificava a sua reprovação com um argumento plausível, ‘não me andes descalço que ficas com os peúgos todos encardidos’ mas só até certo ponto porque quando eu andava de pé descalço eram só os pés que ficavam encardidos, ou no dizer farense da minha mãe ‘cheios de garro’, e esse era um problema que só a mim dizia respeito. Não obstante ser dela o esforço de passar lixívia pelas célebres meias das raquetes até que o sujo saísse, não era ela quem me vinha esfregar os artelhos para remover a nhaca que ali se colasse em virtude de tardes de bola na Escola do Carmo ao calor abafado do Algarve, nem era essa uma parte da minha anatomia que eu exibisse despudoradamente para que as vizinhas soubessem que o filho da Lili era um porcalhão e mais porca era ela que tinha um filho assim tão labregozinho. Eram incoerências em que os adultos de vez em quando incorriam no seu processo de educação de filhos, eu aceitava a regra idiota na medida em que isso não me fazia pobre nem doente mas sempre tive para mim que no dia em que eu tivesse a minha própria casa andaria nela descalço até me descolar a pele da planta do pé, ganhar panarícios ou criar esporões.

Chegou a era tão ansiada da emancipação doméstica e a minha emigração para Santo António do Alto originou novas regras, andar descalço até de inverno, muitas vezes descalço até ao pescoço gozando o chão de corticite dos meus quartos sem que ninguém me apontasse dedos ou ralhasse comigo. Percebi então que esse prazer tinha um preço, buracos que apareciam em posições estratégicas dos peúgos: Calcanhares, o dedão, a trivela. Os meus peúgos preferidos viam-se progressivamente desgastados, coçados, transformados em coleções de fibras têxteis avulsas sem trambelho nenhum. Rapidamente conheci o fundo da gaveta das meias, sinal de que o número de indivíduos residentes naquele habitat estava a baixar drasticamente, problema aborrecido porque nunca fui homem de ganhar o suficiente para comprar a quantidade e ter a variedade de peúgos com que sempre sonhei. Fiquei a saber que tinha de os restaurar, para isso muni-me de linha e agulha e fiz-me à vida porque um homem enrascado é pior que uma mulher grávida. Desde então, mal ou bem tenho cosido muitos pares de meias e dado vidas extra a muitos peúgos que em condições diferentes tinham facilmente ido parar ao caixote do lixo.

Quando vim para a Polónia trouxe o meu estojo de costura, não fosse o diabo tecê-las e eu não saber como se diz dedal nesta Babilónia. Entretanto as agulhas perderam-se por artes mágicas, não sem que antes eu tivesse aprendido como se cosem meias, o que me animou a procurar os ditos instrumentos de costura para poder dar conta da roupa dos calcantes. No cartucho das agulha que comprei na semana passada saiu-me este aparelho do lado esquerdo, para que raios serve?

Agulhas