terça-feira, 7 de novembro de 2017

Listopad

Novembro no centro de VarsóviaPenso que já aqui referi, se não o fiz é altura de o fazer, que é o outono polaco e não o inverno a estação do ano que menos gramo. Poder-se-ia pensar que fosse complicado para um algarvio suportar a dura invernia continental mas garanto-vos que comparado com o outono o inverno é piners .

O outono traz os primeiros frios e os dias mais curtos, é no outono que tenho de me pôr de rabo para o ar a tirar as grossas roupas quentes da arca que está na varanda, é no outono que acordo com o nariz entupido resultante da frieza noturna, é no outono que tenho de pôr mais uma ou duas camadas de fazenda em cima do organismo e fazer de cebola sempre que vou para dentro de portas, é no outono que gasto uma remessa de dinheiro com a mudança de pneus e de fluidos do carro, é no outono que se instala uma espécie de pré-neura que antevê os gélidos ares do ártico que arrefecem as curvas das orelhas e os pelos no nariz.

De todos os infinitos e insuportáveis três meses de outono é o novembro que mais detesto. É cínico e hipócrita. Não tem identidade própria, não é quente como o agosto nem realmente frio como o fevereiro. Não existe nada que realce novembro, até janeiro que é a segunda-feira dos meses pode ser encarado como um virar de página, um novo começo. Novembro é demasiado longe do princípio do ano e não suficientemente perto do fim, só serve para complicar e prolongar o caminho entre o fim do verão e as festas de dezembro. Como se diz na minha terra, não é pão nem bolo. O mês começa logo torto com o dia de Todos-Os-Santos que apesar de ser feriado - e a malta gosta de feriados tenham eles a origem que tiverem - é um dia sombrio, o dia em que se visitam cemitérios e ninguém vai a um cemitério por desporto, ninguém põe lá os pés a não ser que tenha lá um parente sepultado. É a triste romaria de gente taciturna enterrada em casacos e xailes negros, caminham de passo carregado pelas ruas molhadas do chuvisco, velhinhas e velhinhos ou estórias de gente que partiu no auge da vida. Uma depressão. Entretanto os técnicos da cidade começam a instalar as iluminações natalícias para as pessoas gradualmente perceberem que é preciso comprar prendas, mesmo que com mês e meio de antecedência. Não percebo por que não penduram as luzes logo em outubro quando a hora muda, faziam-se logo as compras de Natal, organizavam-se os jantares de empresa e de amigos nessa altura e despachava-se a coisa para termos mais vagar e fundos para planear a passagem de ano. Mais, é em novembro que começa a fazer frio demais para se jogar à bola ao ar livre sem ser enfiado em colãs, luvas e camisolas térmicas, coisa que sempre me fez confusão porque sempre me senti um pouco espartilhado dentro dessas peças de roupa que mais se adequam a desportos de montanha do que a futebol. A meu ver novembro só tem um dia giro, é o dia 20 que é o aniversário da minha irmã. Mesmo sendo um dia alegre no qual faço sempre questão de enfiar um penálti à saúde da minha mana, este dia do malfadado novembro avisa-me que duas semanas depois é a minha vez de ter uma unidade a somar no conta-quilómetros e isso deixa de ter piada a partir duma certa idade, principalmente quando a idade termina em -enta.

Novembro em polaco diz-se Listopad. É uma das poucas palavras que os portugueses podem pronunciar tal como se lê e deve ser a única virtude do termo. Li que Listopad provem dos vocábulos liść (folha) e pad  (derivação do verbo padać – cair). Então a própria palavra faz alusão a folhas cadentes, caducas, que são arrancadas dos galhos por rajadas que anunciam a época do escuro e da friagem. Tal depressivo mês podia perfeitamente ser riscado do calendário, não vinha mal nenhum à sociedade e era menos um mês de despesas.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Postais da Polónia - 23

Jardim urbanoO pior momento da carreira de um futebolista, mesmo amador, ao contrário do que se pensa, não são as lesões nem o seu final propriamente dito. É o início da temporada seguinte à sua retirada. Consulta-se instintivamente o relógio quando o corpo sente chegar a hora do treino, caminha-se sem querer para a gaveta onde está arrumada a roupa do treino, olha-se para o cimo do armário da cozinha onde estão os boiões da creatina e dos aminoácidos, perscruta-se a varanda à procura do saco das chuteiras para por fim soltar uma lufada de ar dos pulmões em frustração dizendo para os botões: “Não, não, meu caro amigo. Isso já acabou e tens de arranjar outra coisa para fazer. Vai para o ginásio ou mete-te em cima duma bicicleta porque já não tens cabedal para essa vida dos futebóis”.

Como eu não gosto de ginásios porque não aprecio desporto em recinto fechado, a alternativa que a consciência ditou foi a bicicleta que é uma excelente invenção porque serve de meio de transporte e ao mesmo tempo queima-nos calorias. Deste modo comecei a rodar pelas ruas de Chomiczówka que é como o meu bairro se chama, estendi progressivamente o raio de ação primeiro ao antigo aeroporto militar de Babice, depois ao forte que dá nome à freguesia vizinha de Bemowo. Entretanto a Lena também comprou uma bina e aderiu aos meus passeios que passaram a ter percursos como o Bosque de Bemowo, onde ao passarmos ao largo da composteira de Radiowo a minha comadre ia caindo da bicicleta quando nos cruzámos com um javali que por lá procurava alimento, onde existem duas reservas naturais nas quais residem os ditos javalis, esquilos e outra bicharada incomum nas paisagens algarvias e onde estão situados uma série de pequenos talhões de terreno que sempre me intrigaram.

As grandes cidades da Polónia, pelo menos as capitais de distrito, têm parcelas de terreno a que chamam Ogród Działkowy – algo como Jardim Urbano. Durante o regime socialista, estes terrenos foram cedidos pelo município a empresas que por sua vez os passavam a funcionários como bónus, uma regalia concedida a um colaborador que se destacasse no seu emprego e que conferia o usufruto do terreno como se fosse seu. Nesses talhões as pessoas podiam cultivar pequenas hortas ou apenas arrelvar um jardinzinho para embelezar a área onde às vezes se erguia uma construção básica (geralmente de madeira) na qual se passavam fins de semana de verão – porque a construção nunca oferecia condições para ser habitada de inverno. É frequente vermos enormes manchas verdes inusitadamente próximas de áreas densamente habitadas e se aproximarmos o Google Earth dessas áreas conseguimos descortinar as delimitaçõesJardins de Piaski dos talhões e as pequenas casinhas de férias de muitos polacos, em algumas cidades como Rzeszów vi este tipo de estruturas em pleno centro urbano.

Mesmo falando com muitos amigos e alunos não fiquei com uma ideia concreta de como as suas famílias obtiveram o direito a gozar do terreno, uns dizem que veio do avô que trabalhava na empresa XYZ e que o recebeu por esse motivo, outros contam que o tio assinou um contrato de usufruto que expira passados 99 anos mas o certo é que ninguém é proprietário desses terrenos – nem poderia ser porque no tempo da PRL (República Popular da Polónia) não havia propriedade privada. O certo é que muitos polacos gozam das suas “casas de férias” comodamente plantadas em áreas apetitosas da cidade nas quais vão caindo os olhos gulosos das construtoras. Os municípios resiste à pressão imobiliária e vai garantindo aos cidadãos um espaço de reset com contacto direto com a natureza onde se pode jardinar tranquilamente ou refugiar-se da agitação citadina.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Instalar ou não instalar antena parabólica, eis a questão. Ou uma reflexão sobre o estado da imprensa portuguesa - III

VouchersCogitada a tática, havia de a pôr em prática. Aqui reconheço a sagacidade dos RPs, Diretores-Gerais, Diretores de Comunicação, Assessores de Imprensa e funcionários afins que compreenderam qual era o melhor canal de divulgação da propaganda. Abandonaram o registo populista de peixeirada que consegue sempre causar sensação e arrebatar as massas ignorantes, eliminaram os Mr. Burns que não acrescentavam nada à dignidade que o futebol português precisa de ter e delegaram esse odioso papel em uns quantos jornalistas que, por terem de ganhar a vida, passaram a ter como missão serem executantes do plano. Os temas são analisados, os alvos escolhidos, as intervenções são treinadas, as perguntas alinhadas, os comentários sintonizados. À hora do concerto, seja televisivo seja escrito, todos os instrumentos tocam a mesma música e todos seguem os mesmos arranjos numa notável consonância de opiniões e argumentos, como se todos acompanhassem a mesma partitura, como se lessem todos o mesmo livro, ou a mesma cartilha. Progressivamente vão calando as vozes discordantes à medida que se vai subindo a fasquia da glorificação. E é desta maneira, tão pioneira quanto profissional, que se vai formatando e envenenando a opinião pública.

Poderá agora o leitor perguntar:

- Está bem, mas no que é que isto contribui para o que se passa no campo? Porque é dentro de campo que os jogos são disputados e ganhos e não nos jornais e na televisão.

Vamos imaginar que o leitor é dono de um restaurante, digamos um restaurante vegan/vegetariano no qual o leitor investiu uns bons patacos ao ponto de se ter tornado uma casa de referência. Mais ou menos na mesma área existe um restaurante de peixes e mariscos e uma churrasqueira. Um belo dia o leitor apercebe-se que a imprensa especializada começa insistentemente a falar de carne. Dos benefícios da ingestão de carne, dos tipos de corte, da presença essencial que a carne tem na nossa dieta, no ferro que as senhoras grávidas precisam de consumir. Nos programas gastronómicos sublinha-se a carne, as publicações culinárias só escrevem bem da carne, na rádio exaltam a carne e sempre a carne. Em uníssono! Está a seguir o meu raciocínio? Agora imagine o leitor proprietário dum lindo restaurante vegetariano que lhe chega ao conhecimento que a gerência da churrascaria anda a trocar e-mails com antigos jurados do Guia Michelin, que nessas missivas se dizia que se tinha de punir os autores de avaliações negativas à churrasqueira e premiar quem dissesse bem. O que faria o leitor? Provavelmente denunciaria o escândalo porque o leitor é pessoa de bem. Mas sabe o que faria a churrasqueira uma vez confrontada com a realidade? Em vez de reconhecer as evidências ou apresentar argumentos que desmintam o que se afirma, diria algo como: “Ah e tal mas aí há coisa de uns anos o gajo dos peixes tinha os carapaus cheios de mercúrio! Ai e coiso, mas tu há anos também fizeste algo que não tem nada a ver mas que vou espalhar por aí que foi uma coisa parecida e todas as pessoas vão acreditar!”

Trocando por miúdos, atividades que indiciam crime e que deviam ser objeto daquilo que antigamente em Portugal se chamava jornalismo de investigação são ignorados e agitam-se casos antigos e encerrados para distraírem as pessoas e evitar que estas se apercebam da gravidade dos casos e os discutam, para evitar que se forme opinião. No fundo e aqui está o cerne da questão: Para evitar que se crie uma consciência. Não falando dos casos é como se eles nunca tivessem existido.

Mas existiram.Apitou a Final da Taça, desceu de divisão

Existiram jantares para quatro pessoas pagos a cada membro das equipas de arbitragem que apitavam no Estádio da Luz, apesar de terem descontinuado a prática (evidenciando uma clara admissão de culpa pois se o procedimento era legal, por que o suspenderam?). Existem e-mails comprometedores trocados entre agentes desportivos com ligação à arbitragem portuguesa e altos dirigentes do clube da Luz cujo conteúdo aponta para tráfico de influências. Existem declarações públicas de árbitros que atestam a influência que o presidente deste clube tem no destino desportivo dos árbitros (basta ver a diferença de prémios monetários entre árbitros. Em 2012 os juízes recebem 1.272 euros por cada jogo na Liga principal e 890 na Liga de Honra). Existem gravações nas quais se ouve o presidente do clube encarnado a aprovar e reprovar árbitros propostos para os jogos da sua equipa. Existem árbitros que afirmam que o seu presidente lhes telefonava  com votos para que os jogos “corressem bem” apenas e tão-somente quando a equipa da Luz era uma dos envolvidas.  Existe todo um historial de pressão e condicionalismo sobre uma classe de agentes desportivos cuja isenção e imparcialidade é imprescindível para que a verdade desportiva se reflita no resultado final dum jogo de futebol e neste momento ninguém está em posição de afirmar que um árbitro entra em campo de cabeça limpa.

Basta fazer as contas e compreende-se rapidamente o dano financeiro que na família de um árbitro pode representar um fora-de-jogo ou um penálti inconvenientes. Afinal, ninguém é de ferroe todos temos contas para pagar.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Instalar ou não instalar antena parabólica, eis a questão. Ou uma reflexão sobre o estado da imprensa portuguesa - II

Fabrico de um ídoloNo tempo em que o jornal Record era trissemanário e A Bola era quadrissemanário, o debate do futebol não atingia os níveis de ordinarice e chinfrim do presente. A Bola sempre foi reconhecida como publicação de simpatia marcadamente benfiquista, reputação consolidada pela presença de redatores como Alfredo Farinha ou Carlos Pinhão que apesar das suas públicas preferências clubísticas eram notáveis homens de letras, escreviam magistralmente quer fosse na defesa da sua dama (o clube da Luz), quer fosse fora do ambiente jornalístico. Conhecido como “A Bíblia” pela sua popularidade mas também pela qualidade dos seus artigos, muitos escritos pela notável pena dos jornalistas acima mencionados mas também com ilustres escritores como Homero Serpa ou Aurélio Márcio, era um jornal que ensinava os portugueses.

O Record começou como contrapeso ao jornal da Travessa da Queimada tendo tido o conhecido sportinguista Artur Agostinho como diretor nos anos 60 e 70 mas virou declaradamente para os “encarnados” nos anos 80 quando Rui Cartaxana foi nomeado diretor, iniciando uma “dinastia” benfiquista que se prolongou pelos pontificados de João Marcelino, José Manuel Delgado e João Querido Manha. Percebeu-se que a linha editorial deste jornal era diferente das antecessoras pois nas suas colunas não faltavam artigos ácidos de acusação a roçar o impropério virados para os rivais da Segunda Circular ou das Antas, uma prática que escalou e transformou-se em lamentáveis lavagens de roupa suja que nada dignificada a classe profissional nem os pergaminhos do jornal. Atingiu o cúmulo da vulgaridade ao ser adquirido pelo grupo Cofina, firma responsável por outro título hediondo da imprensa portuguesa – o Correio da Manhã.

Entretanto os jornais passam a ser publicados diariamente por via das necessidades de tesouraria, não há país desportivo suficiente para alimentar três grandes diários desportivos (o portista O Jogo passou a entrar nas contas como concorrente a Norte) mas há que vender e portanto há que encher as páginas com palavras cativantes. Os artigos de opinião começam a ser cada vez mais inflamados e os portugueses ficam cada vez mais intoxicados pelas mensagens de ataque, já não se defende apenas o clube antes se enxovalha o rival. A notícia, afinal o ingrediente essencial do jornal, cai para segundo plano, a crónica torna-se tendenciosa, o comentário parcial. A manchete tem uma só cor independentemente da relevância do facto, há um só credo, um só pensar, o resto é vulgarizado, até desprezado. Chega a internet e o leitor opta pelo conforto gratuito do computador portátil em vez de gastar €0.80 a sujar os dedos de tinta. Novo rombo nas contas dos jornais, despedimentos, profissionais das letras cada vez mais receosos dos seus futuros, o espectro do desemprego a pairar, o “temos de vender” que se calhar empurra o código deontológico para o fundo da gaveta se tal garantir o posto de trabalho. Por fim e em conformidade com as políticas adotadas e a matriz subserviente do tuga, vem a subjugação em prol das tiragens – transformar-se em órgão informativo oficioso dum clube.

Naturalmente que não se pode usar um jornal desportivo nacional como panfleto de propaganda ou manifesto clubístico, ao fim e ao cabo ainda há uns bons milhões de portugueses que não papam desse grupo, então a tática adotada foi: Dar relevo ao que vitoria o clube grande, enaltecer o que distingue, ignorar o que desvaloriza, branquear o que desprestigia. Inventam-se factos escudadas nas “fontes privilegiadas” e nas “informações recolhidas” em textos invariavelmente assinados de maneira conveniente pela “redação”, arquitetam-se novos deuses com dentes de leite e comemoram-se as suas transferências como de títulos arrecadados, festejam-se acordos de patrocínio (meros atos de gestão) como golos em finais europeias. Subtilmente aPrograma habitual de Ano Novo mensagem vai sendo passada, o que o clube grande faz é que importa, o que os outros fazem é inferior. Calendarizam-se entrevistas de fundo com o mesmo protagonista à imagem de um programa de atividades do clube – a manchete do dia de Ano Novo é mais certa do que a emissão do filme Sozinho Em Casa na noite de Natal. Cria-se uma onda de crença na irreversibilidade do processo que guindará ao triunfo final, o povo está na rua com galhardetes e cachecóis nos punhos em vez de cravos, os media (jornais, rádio, internet e inevitavelmente a televisão) afinam o bagaço ao som da mesma senha que é uma cartilha de em vez dum tema de Paulo de Carvalho, a doutrina é divulgada, a malta ensinada, a situação controlada. O futebol em Portugal é desporto de partido único.

Mesmo que a coisa corra mal, mesmo que surjam evidências que apontem a práticas ilegítimas do clube grande, está tudo tranquilo. Rapidamente a contra-informação trata de distrair o pessoal com areia antiga para os olhos, escusando-se a cumprir a sua missão de investigar e informar, antes assobiando para o lado como se o tema não fosse relevante. A imprensa vende a alma ao diabo por mais um punhado de euros, prostitui-se. O povo aparentemente bate palmas e pede bis. Pão e circo. Assim se ilude e estupidifica uma gente.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Instalar ou não instalar antena parabólica, eis a questão. Ou uma reflexão sobre o estado da imprensa portuguesa - I

PaineleirosEsta é a quinta minha casa em Varsóvia. A primeira era junto à estação de Metro Wilanowska e lá morei com a minha primeira namorada polaca, depois passei para Natolin onde passei três estrondosos anos até que me mudei para Bemowo para partilhar teto com a minha segunda legítima e daí saltei rapidamente para Tarchomin naquela que foi a minha habitação mais duradoura. Agora estou radicado em Bielany depois de ter juntado os trapinhos com a Lena e pela primeira vez posso instalar uma antena parabólica numa casa partilhada, felizmente o apartamento está virado para poente e esta orientação permite a instalação do equipamento necessário para eu acompanhar a atualidade do meu país. Já chamei o técnico e conto as horas que faltam para poder ouvir o idioma de Camões ecoar na sala de estar.

Há algum tempo deixei de consultar jornais portugueses porque a imprensa portuguesa desceu a um lamaçal para o qual recuso contribuir, notícias sensacionalistas, muito fake news, textos copiados de outras publicações sem a devida referência, afinal o reflexo da crise de pensamento crítico que grassa em Portugal. As pessoas adotaram o facebook como fonte de conhecimento por dar menos trabalho, demitiram-se da função de refletir e funcionam como meros retransmissores do que lhes é enfiado pelos olhos e ouvidos abaixo. Por estas e outras razões o sinal televisivo de Portugal é indispensável para eu saber o que se passa na minha terra, a televisão consegue ser mais fiel à proveniência da notícia, posso calmamente evitar o comentário muitas vezes parcial de “paineleiros” engajados de acordo com as suas preferências clubísticas e crio o meu próprio juízo com menos influência exterior do que através da imprensa escrita.

Porque adoro futebol, a televisão é essencial para seguir a Liga Portuguesa e o meu Sporting (enquanto o Farense se encontra fora dos grandes palcos), perceber como está a ser preparada a nova temporada, quem vem e quem sai e também as movimentações dos outros clubes. Para minha grande infelicidade não tenho grandes hipóteses de saber o que realmente se está a passar porque constato que no domínio do futebol a imprensa (escrita e falada) está altamente instrumentalizada e a informação isenta nunca chega ao ouvinte/leitor. Não é possível ao consumidor de informação formar uma opinião objetiva com base naquilo que lhe é dado porque está tudo viciado. É inacreditável o vergonhoso estado de servilismo a que os media portugueses chegaram com maior vexame sendo protagonizado pela imprensa desportiva, a despudorada complacência com que aceitam os ditames impostos por um maestro que, ao movimento duma batuta, introduz no tema as trompetes, percussão ou violinos que interessam tocar consoante o som que seja conveniente ouvir no momento.

A imprensa é considerada “O Quarto Poder”, formata povos, cria opinião, faz e destrói ídolos, políticos, modas, mitos. Uma imprensa controlada é um povo manipulado, subordinado. Não há melhor maneira de se fazer assimilar um conceito do que através da repetição sistemática na imprensa, se o virmos repetidamente começamos a acreditar nele, a Prismas diferentesrespeitá-lo, a aceitá-lo. Não importa se é verdade, a ideia tantas vezes é repetida que acabamos por a assimilar como verdadeira. Foi assim que George W. Bush derrubou Saddam Hussein, foi assim que Deu-La-Deu Martins ludibriou os castelhanos, é assim que se mantém um povo inteiro em delírio. Naturalmente que os portugueses não são tão idiotas como os norte-americanos nem tão historicamente inapto como os castelhanos (ou seus legatários), porém quando toca a futebol todo o discernimento se dissolve. Gente por natureza tranquila e ponderada transforma-se em samurais armados até aos dentes em defesa do seu emblema e nessa bebedeira mesmo pessoas que eu considero inteligentes conseguem mandar bojardas capazes de fazer o planeta parar de girar. O mais curioso é que nem sempre foi assim, antigamente falava-se de bola com amigos de clubes rivais sem qualquer melindre, celebravam-se as vitórias próprias e respeitavam-se as derrotas alheias, coexistia-se sem problemas. Depois surgiram programas televisivos de debate, uma boa ideia em teoria mas que na prática acabou por ser um detonador de insultos e um instigador de conflitos. Em vez de se convidarem jogadores chamaram advogados, em vez de convocarem treinadores trouxeram políticos. Gente de fato e gravatas com palavras de cem euros, a receita infalível para impressionar o tuga (diz coisas que eu não entendo, logo fala bem portanto tem razão no que diz). Não falam de remates porque discutem lances polémicos, não falam de defesas porque criticam arbitragens, não comentam estratégias de campo porque debatem penáltis. Polémica, barulho, algazarra. Como na Fuzeta, quem fala mais alto é que tem razão. É assim que se discute futebol em Portugal e os media aproveitaram a onda para fazer subir o share afogando os portugueses em controvérsia e confusão. Fala-se mais da atuação dum avençado comentador desportivo no programa de terça à noite do que duma jogada duma partida qualquer de domingo à tarde, declarações de um “paineleiro” têm mais impacto do que um ajuste tático brilhante que vira um jogo. Nomes dantes obscuros e insignificantes como André Ventura, Rui Oliveira e Costa, Sílvio Cervan ou João Gobern começaram a ter protagonismo, até mais do que os próprios jogadores. Houve quem tivesse compreendido que se falava mais do que o “paineleiro” disse do que o que o futebolista fez, houve pois quem tivesse percebido isso e que tivesse começado a apostar nessa estratégia.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O Salvador da (nossa) pátria

Salvador SobralQuando se começou a falar nele, logo que ganhou o Festival RTP da Canção, concurso que já achava defunto tal a falta de interesse que despertava no país, comentei na publicação de um amigo no facebook: “O tema é bonito, a voz diferente, a postura em palco não sei se vai colar porque não é muito convencional. Mas pronto, o povo precisa de esperança e nós somos todos geneticamente sebastiânicos.” Ou seja, reconhecia na canção algum potencial mas duvidava que a apresentação do intérprete cativasse os poderes decisórios do Festival da Eurovisão. Nada que me abalasse o pífaro porque há muito tempo tinha deixado de acreditar na capacidade portuguesa de construir uma canção que arrebatasse o troféu e nas faculdades mentais de jurados que elegeram monstros sagrados do nacional-cançonetismo como Rui Bandeira, Tó Cruz, 2B (quem?) ou Leonor Andrade como representantes do retângulo luso na Europa da música. No entanto não fui capaz de ignorar todo o hype em torno do tema de 2017 e percebi que este ano a canção portuguesa estava entre as favoritas para ganhar. Movido pela curiosidade sentei-me no sofá para assistir ao certame, aproveitei o facto de não morar em Portugal para contribuir com o meu voto, a Lena associou-se por solidariedade e resultou que Salvador Sobral conquistou pela primeira vez o primeiro lugar para Portugal no Festival Eurovisão da Canção.

Felizmente enganei-me. Felizmente Portugal não foi medíocre. Felizmente Portugal ousou. É justamente isto que acontece quando os portugueses ousam – triunfam! A delegação portuguesa apostou num visual sóbrio com enfoque único e exclusivo no que realmente importava que era a canção, estratégia que contrastou com as coreografias espalhafatosas (terei visto o Macaco Adriano a dançar durante a canção italiana?), os fogos de artifício e o guarda-roupa de luxo de muitos artistas que pisaram o palco Eurovisão ucraniano e que distraiam as atenções dos telespetadores colocando-os na incómoda situação de distribuir atenção por diversos fatores.

Pode-se gostar ou não da canção e de Salvador Sobral, pode-se concordar ou não com as declarações por si proferidas após ter sido consagrado vencedor do Eurofestival, mas tem-se de dar valor a um português que arriscou desviar-se da mediania aborrecida e estéril que costuma ser enaltecida em Portugal. Nada de grande foi criado sem ousadia e o arrojo de Salvador Sobral e o seu círculo foi o que arrebatou jurados e votantes.

Parabéns, então, a um português ousado. E, pegando também no que sucedeu há dez meses em França, que todos os portugueses reflitam no que pode acontecer se um dia simplesmente… ousarem.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Gosto do Porto – Da série “Coisas que nunca pensei um dia dizer”

FrancesinhaA Majówka, período que abrange os feriados de 1 e 3 de maio mais as eventuais pontes, é uma altura em que muitos polacos viajam para destinos turísticos, seja para apanhar sol em paragens mais a sul ou para férias na neve em destinos de altitude como os Alpes ou as montanhas vizinhas da Eslováquia. Quando o calendário é generoso e oferece uma semana de férias é vê-los a fazer malas e meterem-se estrada fora para a Mazúria, para o Báltico ou eventualmente para fora do país aproveitando as ofertas “last minute”. Eu também costumo aproveitar o fim de semana prolongado para viajar e conhecer mais sobre a Polónia, o ano passado pus a Lena e a nossa Yorkie dentro do carro e fomos desbravar o noroeste polaco na zona de Szczecin e Świnoujście. Este ano, como um amigo do Liceu pôs a corda ao pescoço e convidou-nos para assistir à execução, apontámos a agulha mais para sudoeste e fomos ao norte de Portugal, concretamente para o Porto e o Alto Minho.

Não ia ao Porto há mais de uma vintena de anos, acho que ainda não tinha carta de condução na última vez que tinha estado na Invicta, então as minhas impressões eram fundamentadas no Porto dos anos 90. Uma cidade sombria, sorumbática, suja, decrépita Rabelos e gaivotasapesar de reconhecer nas suas gentes uma afabilidade ímpar e de ser apreciador da sua cozinha robusta. Na altura eu tinha uma certa aversão a cidades grandes e o Porto teve uma crítica negativa talvez por esse motivo também, eu não apreciava a ideia de utilizar transportes públicos dentro da própria cidade para ir do ponto A ao ponto B até porque em Faro o mais que se fazia em termos de transportes públicos era apanhar o barco para a praia. Por isso o Porto sempre teve a chancela negativa de ‘cidade grande’, ou seja, um daqueles formigueiros onde o filho da minha mãe nunca há-de morar. Ainda por cima chove sempre. Nem pó!

Passaram-se os tempos e este vosso amigo acabou por se radicar numa cidade maior do que Faro e bem maior do que as maiores cidades de Portugal. Ao contrário do que ele próprio preconizou, adaptou-se lindamente à cidade grande e apesar de continuar a sentir-se um small town boy deixou cair a ideia antiga de que as cidades grandes não são boas para se viver. Isso contribuiu para que o regresso ao Porto tenha sido uma extraordinária surpresa. O Porto é uma cidade com todas as características duma cidade grande sem ser muito grande, as zonas icónicas estão na sua maioria a uma distância que pode facilmente ser percorrida a pé. O castiço Bolhão onde cada banca de peixe é um palco de teatro, a pitoresca Ribeira com as caves de Gaia a uma braça de intervalo, a chique Rua de Sta. Catarina com o Coliseu a dois passos, os famosos Aliados com o altivo edifício da Câmara Municipal a reinar, os imponentes Clérigos, a solene Universidade, a própria Casa da Música, a movimentada Trindade, a majestosa Estação de S. Bento, a belíssima livraria Lello, tanta coisa bonita que pode ser vista e visitada sem termos de pegar no carro ou metermo-nos em autocarros. Até as pronunciadas subidas e descidas da Invicta se tornam bem-vindas depois de engolirmos uma suculenta francesinha ou uma pratada de bacalhau à minhota (ou de tripas, que na minha terra se chama ‘dobrada com feijão branco’). E o sotaque? Bairrista, tradicional, genuíno como só as zonas típicas o têm. Há qualquer coisa de adorável ao ver uma Rua de Santo António adolescente a gritar para outra “Ó cuaralho, és bourra cumá piça!” e caírem as duas na risada ou como eu ouvi no metro “Ó feilha, agora num aiágua!”. Não há pretensiosismos, não há vanglórias. Há o que há e é-se o que se é, seja o que for. É autêntico, é próprio e eu gostei muito disso. Ah, e não é nada caro! Tirando o pequeno-almoço no Majestic onde tive de ir só para o poder comparar com o Café Aliança (é bom mas não é bombeiro, o Aliança do tempo do meu avô não lhe passava cartão).

No pouco tempo que estivemos no Porto, porque devido ao casamento do referido amigo farense em Viana do Castelo só ficámos duas noites, a Lena ficou encantada com as ruelinhas estreitas e com os painéis de azulejos que revestem as paredes de alguns prédios - mesmo que o fumo dos escapes os cubra de fuligem. Pensou até por breves momentos em investir num prédio antigo e restaurá-lo para depois vender ou habitar. Não iria tão longe ao ponto de a encorajar a tomar uma empreitada dessas em mãos e mudar-me para a Invicta, apesar de não duvidar que se um algarvio triunfa nas neves também o faria nas chuvas (como alguns meus conterrâneos têm feito) mas ficou decidido que voltaríamos para desfrutar mais e melhor da cidade. Se calhar até pode ter sido por termos apanhado dias de sol e por termos ficado hospedados na Praça da Ribeira, o meu subconsciente deve ter pensado que eu estava de novo na cidade da Doca e descarregou endorfinas com fartura no organismo, mas esta cidade e as suas gentes ganharam a minha simpatia e até mesmo um fã.

Agora… não comecem a meter macacos na cabeça. Azul só o do Inter Warszawa.

terça-feira, 28 de março de 2017

Postais da Polónia - 22

A Rotunda antes do encerramentoFoi quando corria o verão de 2008 para o fim, numa fase em que eu gozava fortemente os prazeres da vida de solteiro em Varsóvia, que conheci a Sylwia, uma deslumbrante loura de olho azul petróleo. Estava a dançar no Klubokawiarnia, poleiro garantido das minhas noites de quinta a sábado, ela passou por mim a primeira vez e eu fiquei de boca aberta. Era a figura mais bela que eu alguma vez tinha contemplado, o adjetivo “linda” não lhe fazia jus. Apesar de se dirigir à casa de banho com uma garrafa de Carlsberg na mão, percebi nela uma graciosidade que nunca tinha encontrado, uma feminilidade tão intensa que imediatamente me cativou. Fiquei apaixonado. É certo que naquele tempo eu apaixonava-me com a mesma frequência que o Bas Dost empurra o repolho para o saco, mas aquela mulher matou-me. Quis meter conversa com ela mas como na altura não falava polaco decidi que arriscava em inglês se ela à volta me desse chance. E ela voltou, passou por mim, olhou e seguiu em frente. Desanimei. Ela voltou, passou mesmo à minha frente mas não olhou. Fiquei fulo, “esta gaja está a brincar com o fogo”. Voltou mais uma vez, olhou para mim… e sorriu. “Já foste!”, pensei. Fui atrás dela, encaixei-a a um canto e apesar de não falar polaco e dela não falar inglês não descansei enquanto não fiquei com o número de telefone dela. Afinal quem tem boca vai a Roma e Varsóvia até fica mais longe do que a capital italiana.

Mais tarde combinámos um café para nos conhecermos melhor e tal e coiso e através de SMS trocadas com a ajuda dum dicionário obsoleto e da péssima assistência que o Google Translate prestava ao tempo decidimos encontrar-nos na Rotunda, o ponto de encontro favorito dos varsovianos, que fica não muito longe da estação de metropolitano Centrum. Como o nome indica, é um local central e de fácil acesso, onde o pessoal gosta de se reunir antes de atacarem os bares, restaurantes ou boîtes da Baixa… digo, do Centro. Nesse tempo o meu compincha Mário morava num edifício alto em frente ao Palácio da Justiça, menos de um minuto a pé do ponto de encontro com a Sylwia, por isso passei por casa dele para uma cerveja e matar um pouco de tempo conversando acerca das minhas eufóricas impressões sobre o meu primeiro verão passado em Varsóvia. Uma conversa que ele ouvia com satisfação por já saber do que a casa gastava – ele já tinha alguns verões em Varsóvia no cabedal e todas asExplosão de 1979 aventuras que lhe contava ele já as tinha vivido na primeira pessoa. Quando faltavam uns cinco minutos para a hora recebo uma mensagem com um texto que compreendi à primeira mesmo que naquela época o meu domínio de polaco fosse um pouco mais do que inexistente e que rezava mais ou menos assim:

- São 19:55 e não estás cá, por isso vou para casa.

Cuspindo a cerveja saí disparado à medida que escrevia uma macarrónica desculpa em polaquinglês e valeu-me que a rapariga teve paciência, esperou mais meio minuto por mim e o filme teve um final feliz. Com esta lição aprendi que a pontualidade portuguesa não tem lugar na Polónia se queremos cair nas boas graças das raparigas e que até é conveniente chegarmos antes do tempo combinado se queremos faturar pontos de simpatia.

Foi com esta aventura que me estreei na “Rotunda”, um singular edifício em forma de círculo que servia de dependência do banco PKO desde 1966 e que era o sítio favorito para os varsovianos se encontrarem devido à facilidade de acessos providenciada pela proximidade de paragens de autocarro e elétrico bem como da já mencionada estação de metropolitano. Situado na rotunda Dmowskiego, unanimemente considerada o “miolo” de Varsóvia, a “Rotunda” ficava à entrada da rua pedonal Chmielna por onde se chega à zona nobre da rua Nowy Świat e aos seus restaurantes e cafés. Seguindo o bom hábito varsoviano combinei muitas vezes encontrar-me com pessoal naquele lugar, às vezes chegava mais cedo para ver pessoas amigas saudarem-se calorosamente, namorados abraçarem-se com fervor, desconhecidos cumprimentarem-se pela primeira vez. Era uma coisa muito varsoviana que mesmo sem ser nada de especial representava para mim um passo importante na minha adaptação e no reconhecimento de Varsóvia como um dos seus, sempre que eu propunha o rendez-vous na “Rotunda” a ideia era imediatamente aceite e isso deixava-me com a impressão que as pessoas me davam crédito.

Rotunda atualmente - Foto Gazeta Wyborcza onlineEscrevi o parágrafo anterior dominantemente no tempo pretérito porque a “Rotunda” já não existe. O edifício sofreu com a violenta explosão de gás de 1979 – acidente onde perderam a vida 49 pessoas. A estrutura ficou de tal forma abalada pela violência da explosão que se considerou reconstruir o edifício de raiz, decisão que se revelaria crucial para o destino da Rotunda; o edifício ficou marcado para demolição visto a fachada do prédio ter sido alterada no restauro após o acidente e não coincidir com o traçado original. A deliberação foi tomada em 2015 e os trabalhos de desmantelamento da Rotunda começaram este ano. Porém, o organismo camarário responsável pela conservação e restauro do património revogou essa decisão atendendo a que a fachada corresponde de facto ao que consta no plano original e os trabalhos foram suspensos deixando a Rotunda com um aspeto de prédio despido de vida, um triste esqueleto metálico no âmago da Cidade Capital.

Dizem que há planos para revitalizar a Rotunda e torná-la de novo no ponto de encontro oficioso dos Varsovianos, dizem que há investidores decididos a recuperar um edifício que é inevitavelmente um símbolo de Varsóvia. Pelo valor sentimental que a Rotunda tem para mim e para todos os que diariamente vivem Varsóvia, é imperioso que se recupere a Rotunda e que se feche a cratera que se rasgou em pleno coração da capital polaca. Varsóvia sem a Rotunda é como Faro sem o Largo da Palmeira.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Quando comprar não significa necessariamente que se traga compras para casa

Há semanas eclodiu uma discussão, leia-se uma civilizada troca de pontos de vista, entre mim e uma aluna a propósito da tradução em polaco da palavra portuguesa “comprar”. Tudo isto porque eu traduzi o verbo de duas maneiras diferentes, contemplando os aspetos perfetivo e imperfetivo que tanto azucrinam os estrangeiros que tentam aprender polaco. Tudo porque eu disse:

- “Comprar” significa “kupić” (perf.) ou “kupować” (imperf).

Isto detonou a discussão e a pergunta da estudante.

- Mas, espera. Significa “kupić” ou “kupować”?

- (meio encavacado) E há diferença?

- Claro. “Kupić” usa-se quando tu compras alguma coisa e  “kupować” para o processo de comprar sem que necessariamente compres alguma coisa.

Aí fiquei completamente baralhado. Como é que se pode comprar sem necessariamente comprar? Ou compras ou não compras, não pode haver um verbo para “não comprar”, não há verbos que definam “não-acontecimentos”. Ainda debati este tema com mais uma ou duas pessoas até que finalmente me elucidaram e eu cheguei à conclusão de que este “kupować” significa algo como “ir às lojas”, tipo o nosso português “ver as montras”. Ou seja, não declarar a intenção de comprar mas também não descartando uma eventual compra caso se veja algo que se agrade. Andei matutando nesta situação até uma outra aluna col14467aocar luz sobre o caso e explicar-me esse tal processo de ir às compras sem comprar nada.

- São resquícios dos tempos socialistas, Nuno. Naquela era as pessoas iam às lojas mas não sabiam o que comprariam porque não sabiam o que lá havia. Podias ir com a intenção de comprar carne e voltar com arroz ou açúcar, podias sair de casa para comprar pão e regressar de mãos a abanar. Nunca se sabia o que se ia comprar porque nunca se sabia o que a loja tinha naquele dia. A única coisa que havia sempre era vinagre.

É curioso perceber como as culturas criam palavras para definir determinadas ações ou factos. Como em Portugal nunca experimentei dificuldade em comprar o que queria, desde que tivesse dinheiro, não imaginava que existisse em alguma língua do mundo um verbo que definisse “não-comprar” ou “comprar do que houver podendo acontecer que não se compre nada”

Cada vez me surpreendo mais com esta gente.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Adeus Tarchomin - Virar de página

Em 2013 iniciei um ciclo importante na minha estadia na Polónia com a minha mudança para o bairro periférico de Tarchomin, situado a norte da margem leste do Vístula. Após quatro anos de muito feliz permanência em Tarchomin chegou a hora de encaixotar os pertences na sequência do juntar de trapinhos com a Lena e aqui estou eu a caminho de Bielany, noroeste de Varsóvia, para uma nova etapa de vida.

mudançaAo deixar aquela que foi a minha casa mais duradoura na Polónia não consigo evitar um profundo sentimento de saudade, aquele tão português misto de perda, afeto e nostalgia. Foi no nº 6 da rua Kamińskiego que dei um salto gigante na minha adaptação a este país. Habituado que estava a permanecer debaixo da asa protetora das mulheres com quem vivi, nunca tive a curiosidade (por não ter tido necessidade) de me envolver nas situações práticas do dia a dia como negociar um contrato de arrendamento de casa ou agendar a troca de pneus aquando da mudança de estação. Sofri as conhecidas “dores de crescimento” enquanto passava pelo inevitável período de transição entre o gorado plano inicial de vida com a (entretanto tornada ex-)namorada e o mundo de interrogações que enfrentava no novo pouso. Em Tarchomin, tirando a questão do registo de permanência para o qual tive a ajuda preciosa da Matylda, tive de me virar sozinho e sem rede. Se Natolin foi como a minha universidade em Varsóvia, Tarchomin foi o meu primeiro emprego.

Gosto muito desta minha já praticamente ex-casa. É um T2 com mais de 80 m2 , uma casa de banho maior do que muitos apartamentos do centro do Varsóvia, varanda devidamente orientada para ter a antena satélite instalada e se poder assistir aos jogos do Sporting e até – para indescritível alegria minha – do Farense. Fiz dele um refúgio perfeito tanto para a preparação de aulas e atuações, a tranquilidade dum bairro longínquo permitia melhor concentração no trabalho, como para a libidinagem própria dum rapaz solteiro. Tinha quarto para os hóspedes de Faro, acolhi a minha mãe por algumas semanas, estava contentíssimo. Cheguei uma ocasião a pensar que tinha efetivamente conseguido alcançar o tipo de vida que queria e que nada me faria mudar de rumo.

Mas como diria um dos poucos heróis portugueses contemporâneos (1) a vida tinha planos próprios e tratou de alterar os planos que eu lhe tinha reservado. No menos que esperava eis que surge uma mulher. É uma coisa engraçada, que sempre que os homens pensam que as coisas estão encarriladas surge uma mulher para baralhar as cartas e as dar de novo. Como se na régie desta série de televisão que é a vida o realizador se lembrasse de introduzir um elemento novo, um personagem convidado para fazer subir as audiências do programa. Não percebo se é por sadismo de quem mexe os cordelinhos, se para manter o equilíbrio universal uma vez que estava a divertir-me tanto (teria eu esgotado o plafond de hedonismo?) mas no melhor que eu estava a curtir a minha existência surgiu uma mulher. Não qualquer mulher, porque com certeza não seria uma mulher qualquer que seria capaz de pôr este vosso escriba a ponderar nova mudança de estilo de vida e partilhar teto, mas uma mulher excecional.

Assim, por força das vicissitudes do amor, abandono aquele que foi o meu covil durante quatro intensos anos. Anos de sofrimento, anos de gozo, fundamentalmente anos de crescimento e maturação. Graças a Tarchomin estou agora mais apto e confiante, sinto-me mais capaz de triunfar em Varsóvia e o facto de me mudar para a casa da Lena é uma prova disso mesmo – de que é hora de abraçar outros desafios.

Que os ventos continuem a soprar na mesma direção, assim seguirei em frente.

(1) – Prof. Agostinho da Silva

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Primus Inter Pares - O Platinium fechou

Num espasmo da minha cada vez mais comatosa carreira de DJ, no passado mês de dezembro fui convidado para atuar em alguns clubes de Varsóvia. Foi uma oportunidade para atualizar a biblioteca, desempoeirar as pen-drives e ver o que se passa na noite varsoviana pois a vida de homem comprometido não permite, ou não devia permitir, grandes farras. Uma dessas festas foi numa das minhas catedrais de desbunda, o Platinium

Flyer festa 40 anosSoube com tristeza que vai encerrar e senti um aperto na garganta quando desci da cabine, auscultadores e discos na mala, sabendo que não ia mais voltar àquele lugar. Um clube onde quis tocar mal entrei pela primeira vez, um autêntico santuário de mulheres deslumbrantes e sensuais, verdadeiras feiticeiras de luxúria em dança furiosa e fascinante que me fizeram pôr em causa todos os conceitos que tinha sobre beleza e graciosidade. O Platinium sintetizava a noite da Europa de Leste,  ou Europa Central, como os polacos preferem. Era um supermercado de emoções e prazeres onde os relógios perdiam os ponteiros e as carteiras voltavam ocas para casa. Os olhares femininos batiam muito mais que os shots de vodca, esbofeteavam, arranhavam, despiam e lambiam para depois chutarem contra a parede. Os lavabos dos homens ficavam em frente dos das mulheres e cruzavam-se olhares atrevidos enquanto elas retocavam o batom e eles ajeitavam a fivela do cinto. O house era sempre de altíssimo quilate e na pista os suores corriam como gins e uísques derramados no gelo, toques e abraços, línguas e cabelos, ombros e coxas. O pecado em saltos altos e decotes agudos, os táxis entregavam raparigas bonitas e arranjadas e recebiam feras loucas e famintas, era como uma câmara de transformação onde se dissolviam todos os filtros e logo na primeira noite percebi que valia (quase) tudo.

Várias vezes voltei como cliente e várias vezes embriaguei-me com álcool e pernas, várias vezes nessas várias vezes olhava com gula para a cabine do DJ e imaginava-me por trás dos controles, maestro daquela orgia de sons e perfumes, a ditar de que forma as ancas se mexeriam, a pautar o ritmo dos impulsos, a decidir quando eles podiam ir fumar um cigarro e quando elas voltavam para a pista para que eles viessem atrás delas. Várias, tantas, tantíssimas vezes me perdi e encontrei naquele chão profano procurando compreender se seria melhor tornar-me o chefe da festa musical ou apenas deleitar-me com os lindos frutos que aquele pomar oferecia sem descanso... até que um dia (obrigado, Zinha!) consegui chegar à fala com quem contratava os DJs e após uma audição a um trabalho meu recebi um convite para fazer o warm-up (primeiro DJ que prepara o público para a atuação do DJ principal) de uma noite de sexta. Foi como se tivesse recebido uma proposta para fazer testes no Sporting! Fiquei tão contente que dormi uma média de quatro horas por dia na semana antecedente à atuação porque todas as noites aperfeiçoava o set. No Platinium tive a sorte e a honra (se calhar algum mérito, modéstia à parte) de trabalhar no ano em que o clube foi considerado Best Club in Warsaw, o que não é fácil considerando a concorrência. Fiz parte da equipa de DJs no clube mais mediático da capital da Polónia, cumpri o sonho de mandar numa festa no melhor clube da cidade e como cereja no topo do bolo em dezembro de 2013 recebi os meus amigos e atuei para eles na inesquecível festa dos meus 40 anos (lembram-se daquele soberbo passeio de limusine?).

Na minha última atuação senti que o Platinium já se despedia de mim, não havia muita gente porque os proprietários desinvestiram e não apostaram mais em marketing desde que o negócio da venda ficou fechado. Porém mesmo a meia-casa, mesmo já no inverno duma vida pujante e memorável, lá de cima da cabine consegui de novo ver uma pista cheia de toques e abraços, de línguas e cabelos, de ombros e coxas. Consegui ver de novo os meus amigos perdidos de bezana a enfardar barcos de vodca-Red Bull como se não houvesse amanhã e um blogueiro algarvio entalado entre o balcão do bar e o voluptuoso par de seios e os lábios de uma sueca (pois...), garrafas de vodca espetadas de cabeça para baixo nos frapés da zona VIP, muita mas mesmo muita extravagância.

O Platinium fechou. Parte da minha identidade varsoviana partiu com ele.

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