segunda-feira, 30 de maio de 2011

A pausa

A colina A estação quente parece ter chegado de vez a Varsóvia e em muitas ruas se podem ver esplanadas preenchidas com pessoas sedentas de bom tempo, apanham o sol simpático que tem banhado a cidade e refrescam-se com as cervejinhas da praxe, eles a virarem meios-litros de cada vez, elas mais delicadas a sorverem o fermetado de palhinha e sempre com uma colher de sopa de xarope de amora para dar sabor. Acho que a cerveja com sumo é uma profanação, é como ouvir Mozart tocado numa guitarra elétrica ou imaginar Ryan Giggs no Liverpool, só pensar nisso devia dar cadeia. As polacas porém tomam a cerveja com xarope ignorando a minha opinião mas há algumas que partilham da minha posição e praticam o culto cervejiano como deve ser, sem mistelas.

Agora apetece muito cervejar nos cafezinhos da cidade e o Gonçalo descobriu um ponto interessantíssimo não muito longe da Universidade onde podemos almoçar ou lanchar na companhia de louras e frescas. No copo ou nas cadeiras de praia inteligentemente espalhadas na colina, as louras e (agora) frescas deleitam as vistas e gargantas destes dois portugueses que se regalam com os pequenos prazeres que uma cidade como Varsóvia pode proporcionar. Passar 50% do ano abaixo de 0ºC ensina-nos a valorizar melhor os momentos agradáveis e a apreciar todos os detalhes que melhoram a qualidade de vida, prova disso foi o quadro que encontrei quando cheguei a casa do trabalho, 22:30 e a minha namorada estava com uma amiga vendo filmes no YouTube de mantinha nas pernas porque a noite estava demasiado agradável para se estar dentro de casa. Os convites para churrascos começam a sair em catadupa porque todo o minuto de sol é precioso e os polacos não os querem desperdiçar, os supermercados já têm as prateleiras cheias de fogareiros versão portátil, a secção da carne tem empacotados pré-temperados prontos a serem jogados para a grelha, carrinhos saem das caixas carregados se sacos de carvão e acendalhas.

Eu gosto de passear na Cidade Capital quando o tempo está assim e quando tenho um buraquinho no horário, gosto de descobrir tesourinhosCandeeiro escondidos como este antigo candeeiro com o número da porta das casas e um pitoresco sinal de saída de automóveis tão característicos dos anos antigos. Gosto também de ver o verde dos parques e das alamedas, contraste agradável com a melancolia do inverno quando a neve tapa tudo, até o espírito das pessoas. E gosto muito de dedicar tempo às frescas e louras com o meu “afilhado” Gonçalo refastelados nas espreguiçadeiras da colina da rua Obożna, enquanto reciclamos o espírito e corpo - absolutamente essencial para quem tem que obeceder às exigências que Varsóvia impõe – e ele atira, consolado, com o seu sotaque alfacinha:

- Padrinho! Isto é que é cólidade de vida, hein?

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Cosa Deles - 3

Estádio de Bydgoszcz As ligações entre clubes de futebol e as claques tem sido motivo de muito estudo e reflexão tanto em Portugal como na Polónia, o mau comportamento dos adeptos e alguns negócios clandestinos e pouco lícitos são alguns pontos negativos atribuídos às torcidas que ensombram assim a sua atividade princial que é a de animar um jogo de futebol com cânticos de apoio à equipa preferida, coreografias de notável efeito plástico e criação duma atmosfera de festa em cada jogo. Nos últimos dias, e após o incidente da Final da Taça, a lei polaca sobre os espetáculos desportivos tem vindo a ser revista e o próprio governo central já interferiu na discussão tomando medidas severas, porém é importante contextualizar a situção.

É lendária a reputação de arruaceiro do adepto polaco de futebol. Violento e provocativo, torna-se pior quando passa as fronteiras do seu país talvez por ter de mostrar a força e o espírito guerreiro dos polacos. Na última Final da Taça da Polónia, disputada entre o Lech Poznań e a Legia de Varsóvia e decidida a favor da turma da capital no desempate através de pontapés da marca de grande penalidade, quando o defesa esquerdo legionista Jakub Wawrziniak ajeitava a bola para bater o tiro decisivo a claque da Legia irrompeu pela vedação ante a ineficiência dos atónitos stewards, invadindo a pista de atletismo e colocando-se em cima da baliza do guarda-redes adversário. Quando vi esta situação, pois estando em Faro acompanhei o jogo numa transmissão pela internet, temi uma catástrofe se Wawrziniak falhasse o penálti e um problema ainda maior de Kotorowski defendesse. Felizmente a bola entrou e a invasão deu-se com caráter pacífico, embora proibida, respondendo os adeptos dos ferroviários com o lançamento de cadeiras para o relvado. Como pena pelo sucedido os jogos seguintes da Legia e do Lech foram disputados à porta fechada numa decisão tomada pelos Governos Civis da Mazóvia e da Grande Polónia com a aprovação incondicional do Governo de Donald Tusk. As atenções dos jornais voltaram-se de novo para as claques com estas a protestarem contra a decisão e com o Poder Central a delegar autoridade ao Poder Local para que este mande encerrar estádios sempre que achar que não estão reunidas condições de segurança para os espetadores.  Mais jogos se disputaram à porta fechada em Łódż e em Wrocław sempre com o mesmo pretexto, falta de segurança nos estádios, e com as claques do lado de fora do edifício a cantar e a apoiar os seus jogadores. No final do Legia – Korona os jogadores da casa quiseram agradecer aos adeptos o apoio prestado mas foram impedidos pelas forças policiais o que endureceu ainda mais a posição das claques, agora unidas sob a mesma bandeira.

Parece que na Polónia ainda se faz algum jornalismo de investigação e descobriu-se que as relações entre clubes e claques são mais do que institucionais, nalguns casos roçando a promiscuidade e passandoStaruch e a Taça claramente a legalidade. Veio agora a público que a direção do Lech Poznań decidiu conferir a exploração de todos os espaços de restauração do Estádio Municipal (leu bem, municipal) a uma só empresa, figurando no contrato que todos os eventos a terem lugar na infraestrutura do estádio terão catering exclusivo dessa tal empresa. O facto é por si anormal por não ter havido concurso mas também porque a firma em questão pertence… ao presidente da claque do Lech, o que sugere um pacto implícito entre as duas entidades para que haja paz em dias de jogos. Um contrato perigoso que ainda prevê a indemnização de 10.000 zlotys (aprox. €2500.00) por cada ponto de venda à dita empresa no caso de ser contratada uma concorrente, situação recorrente pois a primeira empresa não tem estrutura suficiente para dar resposta às solicitações. Em Varsóvia a situação não é mais pacífica, as companhias que são responsáveis pela segurança durante os jogos são contratadas em negociações tripartidas entre um diretor do clube e dois diretores… da claque numa flagrante violação da ética senão mesmo da lei.

A propósito da claque da Legia e das ligações perigosas entre poder e futebol, conte-se um episódio interessante: O líder da Żyleta (claque da Legia) conhecido como Staruch, protagonista de inúmeros incidentes com a polícia, esperou os jogadores à saída dum jogo perdido em casa e agrediu um dos mais carismáticos atletas, Rzeźniczak. Imediatamente detido, Staruch foi proibido de frequentar as instalações do clube e posteriormente viu a sua pena agravada para a interdição de assistir a jogos de futebol em estádios de todo o país. Mal-grado o seu castigo marcou presença na final da Taça e foi amplamente fotografado a levantar o troféu nas bancadas que não podia pisar. Após investigações internas soube-se que a polícia pediu bilhetes e uma amnistia à Federação Polaca de Futebol para que Staruch pudesse assistir à partida ao vivo apesar da pena imposta. O comandante da divisão policial acabaria por ser rapidamente exonerado mas Grzegorz Lato, presidente da federação, não se coibiu de afirmar que “o Governo não consegue lidar com os vândalos e a polícia tem medo deles” indo mais além nas acusações culpando a “lei fraca” do país e observando que “na Inglaterra Margaret Thatcher conseguiu afastar os bandidos dos estádios mas aqui a solução é encerrá-los”.

O problema não é exclusivamente polaco pois se olharmos para os três grandes do futebol português vemos o presidente dos Super Dragões que anda de Porsche sem sequer ter atividade profissional reconhecida, os No Name costumam ter mais armas nas suas instalações que um quartel dos Comandos e que a Juve Leo (da qual fiz parte) era sempre ouvida – nem que fosse à força – quando novo treinador tinhe de ser escolhido (Mourinho não veio para o Sporting devido a pressões da Juve Leo).

O Euro2012 é já amanhã. Os estádios são modernos, bonitos e funcionais. Os homens continuam os mesmos, cá em Varsóvia ou aí à beira-Atlântico.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Maio em Faro e o Maio em Varsóvia

O clima

Em Faro:

- Zé Manel? Como é que é, vamos até à praia beber uma no Havana?
Em Varsóvia:
- Vento do cacete, uma pessoa nem consegue olhar em frente!

Os tempos livres

Em Faro:
- Bom, vou pegar na prancha que isto já dá umas ondinhas…
Em Varsóvia:
- Amanhã vou dormir que nem um sapo, só quero ver quem me saca da cama!

As atrações ao fim de semana

Em Faro:

Janta com os amigos, cafezinho no Columbus, uma volta à rua do Crime e chegar a casa às 3:00 ainda a cheirar a after-shave.

Em Varsóvia:

Pelada rasgada em pavilhão de relva sintética, janta com os amigos, doses brutais de vodca para digerir, destrouxo intenso em duas ou três boîtes e chegar a casa às 9:00 a cheirar ao perfume da Asia ou da Basia ou da Kasia ou das três ao mesmo tempo… ou até mesmo voltar com as donas do perfume.

As festas populares

Em Faro:

Festa da Pinha, caracolada na Alameda, mariscadas no Zé Maria porque o Canito faz anos, assadas de carne no aniversário do Baranito.
Em Varsóvia:
Churrascos em Powsiń, churrascos em Kampinos, churrascos em casa, churrascos a torto e a direito para celebrar os feriados de 1 e 3 de maio.

As expetativas

Em Faro:
- Epa.. Manchester United vs Barcelona, vai ser um jogaço! Onde é que nos vamos juntar para ver isso?
Em Varsóvia:
- (nas notícias) “Cinzas do vulcão islandês aproximam-se do Báltico” Bom, bom bom…Querem ver que vamos levar com essa merda nos cornos?

A conclusão de fim de dia

Em Faro:
- Moss, amanhã ainda é quinta…
Em Varsóvia:
- Yaaaaaaaaa! Amanhã já é quintinha!!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A lenda que dá nome à terra

Wars e Sawa O nome da capital polaca, em polaco Warszawa que se lê Varcháva, provém de tempos antigos e de um casal, ele Wars e ela Sawa. A lenda reza que algures entre os séculos VIII e IX numa era em que, naquilo que hoje é a Polónia, habitavam tribos eslavas sendo os Polanos o grupo mais poderoso estabelecendo-se na zona central do território, cerca da atual cidade de Poznań. Outras tribos eram por exemplo os Silesianos que estavam radicados nas imediações de Wrocław, os Checos, os Eslovacos, estes últimos ocupando terrenos que pertencem agora à Rep. Checa e Eslováquia respetivamente, os Pomerânios, os Mazovianos entre outros grupos étnicos menos expressivos. Interessa reter que os Polanos eram a tribo melhor sucedida e que procurava expandir as suas terras ganhando assim ascendente e superioridade entre as tribos vizinhas. Nessas cruzadas participavam igualmente os líderes das hierarquias tribais que, além do papel político que desempenhavam, combatiam no teatro de guerra como qualquer soldado por serem também comandantes supremos dos seus exércitos. Os Polanos, hábeis na guerra, conseguiram atingir as margens do rio Wisła muitos quilómetros para leste da sua base. Nesses terrenos aventurou-se o príncipe Siemomysł, regente dos Polanos e pai de Mieszko I – futuro Duque da Polónia e unificador do país- numa caçada quando foi surpreendido pela noite.

Caíra a escuridão demasiado depressa e o príncipe, entusiasmado com a caça, separou-se do pelotão perdendo-se e não conseguiu encontrar o caminho de regresso. Após muito vaguear ele chegou a uma margem do rio Vístula onde avistou a luz duma modesta cabana e decidiu bater à porta porque era cada vez mais escuro e perigoso andar na floresta. Abriram-lhe a porta um pescador, Wars, e a sua mulher Sawa, que lhe deram comida e cederam-lhe a sua cama para que pudesse descansar ignorando em absoluto o estatuto do seu visitante. Na manhã seguinte o príncipe agradeceu aos pobres pescadores e proclamou:

- Não hesitastes a aceitar um estranho sob o vosso teto, alimentaste-lo, salvaste-lo da fome, do frio e talvez de animais selvagens. Por isso, doravante estas terras terão o vosso nome para que a vossa bondade jamais seja esquecida.

Outras versões da lenda contam que Sawa era uma sereia que capturouSyrenka o  pescador Wars, justificando assim a figura-símbolo de Varsóvia e até há versões que contrariam todas as existentes argumentando que Sawa é um nome masculino em Eslavo Antigo. A lenda aqui reproduzida é a mais divulgada, inclusivamente era matéria obrigatória no programa do ensino primário até há alguns anos, e é a história mais consensual e a que mais polacos aceitam como originária do nome da Cidade Capital – Varsóvia.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Reflexões filosóficas luso-polacas

Postulado emanado duma aula de língua portuguesa:

Se Isaac Newton fosse português a gravidade nunca teria sido descoberta. Porquê? Porque sendo português ele estaria à sombra da bananeira e as bananas não caem.

terça-feira, 17 de maio de 2011

À do Ti Chico

Merceeira Um pouco contra a corrente do tempo e numa era em que o consumismo hipnotiza as gentes fazendo-as acorrer em manadas histéricas aos gigantes centros comerciais, na Polónia, não apenas nas vilas e aldeias mas também nos maiores centros urbanos, ainda está bem vivo o conceito da mercearia de bairro, a Sklep Spożywczy que se pode encontrar em cada quarteirão.

A reconstrução da capital polaca planificada pelos soviéticos teve aspetos maus, como a falta de gosto de alguns edifícios manifestamente negativos e sombrios, mas também teve lados bons como uma estupenda arquitetura paisagística onde o verde dos parques se equilibra com o cinzento do betão, avenidas de três e quatro faixas e passeios largos nos quais os prédios distam sempre uma mão-cheia de metros da linha de estrada. Os construtores de então, obviamente empresas do Estado, tinham de rodear os blocos de apartamentos de espaços verdes onde um parque infantil era (e ainda é) prioritário e em cujas instalações também tinham de funcionar uma farmácia e uma mercearia. Algumas dessas tradições vão-se mantendo até aos dias de hoje e podemos ver em qualquer construção o respetivo espaço para a instalação do parquinho de areia ou tartã para as crianças se ginasticarem e nunca estamos a mais de cinco minutos a pé de uma farmácia… ou de uma mercearia.

É claramente uma medida que contribui de maneira formidável para a qualidade de vida das populações, ao contrário do meu país onde em muitas ruas os peões são obrigadas a tourear carros nas ruas porque os prédios lhes roubaram os passeios, as mesmas ruas onde as crianças têm de jogar à bola porque os empreiteiros não constroem garagens e os automóveis são estacionados quase dentro das áreas comuns do prédio, país no qual em vez de se leva a família a passear ao shopping como se fosse um ato social em vez de tempo de qualidade. Aqui a Polónia leva a palma e respeita as suas pessoas fomentando hábitos higiénicos e saudáveis, todas as manhãs e em muitos fins de tarde vejo mães e avós sentadas no beiral do parque infantil do meu condomínio enquanto vigiam as crianças que sobem e descem os escorregas, que trepam as aranhas e gaiolas, que andam de baloiço dando às vezes grandes malhos na areia. Até aí se nota uma diferença comportamental sendo que os polacos são partidários do “Caíste? Alevanta-te!” que se dizia no meu tempo em contraponto com a teoria alucinada das criançasEscola do Carmo bacteorologicamente puras do séc. XXI sem tintas com chumbo nos brinquedos nem cascarrões arrancados com unhas sujas. No meu tempo jogávamos à bola no alcatrão do recreio da Escola do Carmo, às vezes lá ia uma vidraça nas horas mas as contínuas não nos chateavam porque sabiam que nós não fazíamos por mal, até evitámos dois assaltos quando os Andorinhas, perigoso gangue juvenil originário do pouco recomendável bairro da Horta da Areia, entraram pelas traseiras para roubar leite e material escolar sendo que retivemos os gatunos no interior da Escola enquanto chamávamos a polícia e alertávamos a descansada D. Rosette que morava duas portas abaixo. O Ti Chico, merceeiro analfabeto que vendia papossecos de lenha no seu escuro cantinho no Alto Rodes, tinha sempre um sorriso para as crianças e tratava toda a freguesia com simpatia inigualável, recomendava dias para a compra da fruta e franzia o nariz como sinal de desaprovação quando os pimentos estavam moles ou as batatas já estavam greladas.

Estou prestes a comprar casa em Varsóvia e a escolha recaíu num T2 rés-do-chão com 54,6 m² de área e mais de 70 m² de jardim privado para plantar árvores e pendurar uma rede fora o terraço e o espaço que vou ter depois da cerca para poder ensinar os putos a andar de bicicleta ou de patins. Caro, é verdade, vai sair a quase €2000.00 por metro quadrado (para termo de comparação, o preço em Faro está a €700.00/m²) mas qualidade de vida é coisa que não me irá faltar, nem a minha mercearia do quarteirão para as urgências do quotidiano.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

- Meus amigos, esta é a minha cidade.

Nowy Swiat Dias diferentes estes após o regresso de uma semana em Faro principalmente pela ameaça de neve que pairava sobre a minha cabeça uma vez que nevou em Varsóvia no dia anterior à minha volta. Entretanto meteu-se um fim de semana com visitas farenses, elementos da velha guarda, a patrulha da Rua do Crime, alguns de cabelos grisalhos, outros com mais adiposidades que cabelos fizeram o favor de darem cá um pulinho ver como vivo e provar um pouco da cidade que tanto exalto. Adoraram como seria de esperar, Varsóvia recebeu-os como verdadeira cidadã polaca, embrulhada numa capa de desconfiança, cinzenta e pingosa, sem grandes expressões de simpatia no primeiro contacto para breve se revelar, desabrolhar os seus encantos e tesouros e exibir o seu fulgor da melhor forma possível.

A rua Nowy Świat estava soalheira com uma multidão de beleza indescritível, excelentes pedaços de formosura humana a passear charme, bocados de volúpia sentados em selins de bicicleta para lá e para cá, os óculos escuros a proteger delicados olhos de mar, os lábios lascivos pintados em tons de pôr-de-sol, cabelos louros como se fossem espigas de trigo penteadas pela brisa da tarde, inquietos os meus colegas e distraídos entre a fresca caneca de litro e o quente chamamento que vinha dos perfumes da calçada. À noite não foi pior, as saias curtas e os saltos altos concebidos por mão humana mas com as respetivas ancas e tornozelos desenhados pelo melhor arquiteto genético da humanidade, a transpiração visível nas ofegantes discotecas da Cidade Capital em que cada batida é um impulso na direção da luxúria e do pecado. Varsóvia excitava-se e entregava-se, eles pediam bis e tris à medida que os quadris os espremiam, noites de aplausos e cerveja, alvoradas de sorrisos e memórias marotas.

O Pedra e o Gravata já estão nas suas casas, eu mantive-me na minha e saí mais um dia para o trabalho. Varsóvia ignorou-me como se estas últimas noites nunca tivessem acontecido, como se nada tivesse passado. A cidade mantém o ritmo habitual concentrada nos seus afazeres, sempre muito atarefada e demasiado ocupada para me dar atenção. Eu parei na rua e olho para ela chocado com a sua indiferença, nem uma palavra sobre o deboche anterior, nem um comentário acerca da devassidão do fim de semana, ela continuava trabalhar e nem tampouco olha para mim. Quando eu me preparava para lhe voltar as costas e dedicar-me às minhas coisas, Varsóvia por fim virou a cabeça e disparou sem rodeios enquanto me piscava subtilmente o olho:

- O que é que fazes este fim de semana?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Postais da Polónia - 15

A internet é um bem indispensável nos dias de hoje, acho que está para a civilização moderna como os cavalos estiveram para a Idade Média, e cada lar tem internet tão naturalmente como tem televisão na sala ou como tem janelas no quarto. Para alguns, nos quais eu me incluo, a Rede é uma coisa quase tão essencial como ter uma cama onde dormir ou ter pão em cima da mesa - aliás, eu passo melhor sem pão do que sem net. O facto de ser emigrante talvez aumente a necessidade de estar ligado seja para comunicar com amigos e família, seja para saber novas da minha terra. Recordo com orgulho que uma das primeiras ações após a minha (chamemos-lhe assim) emancipação em Varsóvia foi ligar para uma operadora e agendar a instalação do serviço na minha nova casa, trabalho feito como se fosse um trapezista sem rede mas que resultou numa rápida ligação ao mundo em qualquer ponto do apartamento, pacote regateado com bravas e imperturbáveis negas às sucessivas tentativas de impingir mais uns mil-réis de serviço escusado como rede fixa ou canais polaco por cabo, coisa desnecessária porque recebo o sinal português de televisão por satélite. Pode parecer coisa de somenos mas negociar um contrato com a Aster só com oito meses de língua polaca não é pêra doce.

Chapinha A internet funciona bem e não me posso queixar embora já tenha tido conhecimento de melhores serviços a preços mais meiguinhos, empreitada que em breve delegarei à minha legitima uma vez que ela domina o linguajar melhor do que eu. Todos os meses pago o dízimo para que não se corte o elo com o mundo e ao fim de mais um mês eis que outra fatura aparece depositada a caixa de correio do prédio, o envelope azul com a importância devida, panfletos de promoções, um bloco de apontamentos A5 para organizar as contas da casa e uma enigmática placa metálica sem propósito, anónima, colada ao envelope e que invariavelmente vai parar ao lixo. Passei tempos e tempos procurando uma utilidade para aquele apêndice, tentando encontrar lógicas e fundamentos mas esbarrava constantemente na total ausência de jeito e trambelho duma chapa de aço a acompanhar um maço de faturas. Foi quando alguém pôs fim à minha crise existencial e contou-me a lógica do preceito, tão estranha como plausível, uma espécie de Ovo de Colombo polaco:

- É para as cartas ficarem mais pesadas, assim as empresas pagam menos pelo envio postal.

Pareceu-me uma justificação um bocadinho contraditória, mandar mais peso pelo correio sai mais barato?, mas engoli a história porque já não é a primeira vez que ouço coisas estapafúrdias como explicação para as minhas dúvidas ficando com o porém de ainda não perceber um pormenor: O metal que depois vai para o lixo, não sairá mais caro ao planeta no futuro?

terça-feira, 3 de maio de 2011

Balada da Esquadra de Faro

A maldade dumas e a irresponsabilidade doutras pessoas levou-me à esquadra da PSP de Faro, um local onde nunca tive problemas em entrar - muito menos de sair - mas que não é propriamente o lugar mais turístico da cidade, mais para mais às 23:00. O edifício é sombrio e sinistro, do outro lado da rua fica o Jardim da Alameda e a Escola Tomás Cabreira, mais dois espaços que de noite não inspiram alegria nenhuma. Aqui aguardo diligentemente a chegada dum agente que está a deslindar um crime que me apanhou como interveniente involuntário, uma novela com todos os ingredientes necessários para prender os seguidores. Escusado será dizer que não vou entrar em pormenores revelando apenas que pela primeira vez na vida senti vontade de apagar, limpar, matar alguém. Adiante.

Estou sentado no hall de entrada quando surge uma senhora de cabelos crespos e roupas modestas, diz querer apresentar queixa, o marido ofende-a a torto e a direito, teve de sair de casa e ir para uma pensão em Faro, a oito quilómetros da sua casa porque temeu pela sua integridade física numa noite em que ele regressou mais bruto. Parece-me algo desorientada, perdida mas responde com serenidade às perguntas de algibeira que o agente de serviço lhe faz com um monocordismo capaz de fazer um peixe fechar os olhos. A senhora repete respostas, deita um olhar vazio para o chão, diz que não percebe, que vivem juntos há vinte anos e que há um ano ele começou a ficar diferente, a começar zangas, a acumular processos em tribunal.

O Bem Revoltam-me estas cenas quando o mais forte subjuga o mais fraco à sua vontade e revoltam-me também as pessoas más. É completamente estúpido ser-se mau, causar dor e tristeza aos outros e é estúpido porque é inútil, não enriquece o ser, não enobrece nem confere mais saúde a quem o pratica. Intrigam-me aqueles que se deitam a pensar em maneiras de enganar o parceiro, de trair, de burlar, de obter proveito através do dolo alheio. As botas dos polícias que calcam o chão de mármore da esquadra à medida que trazem relatórios de patrulhas devem já ter pisado muito campo minado, ter perseguido muito bandido, já devem ter caminhado por veredas e azinhagas de escuridões perigosas, emboscadas e ciladas. Não percebo como há homens e mulheres que canalizam tanta energia física e psíquica no fazer mal aos outros quando é do senso comum que fazer bem é muito mais fácil e dá muito mais prazer.

Respeito estes homens que se dedicam à manutenção duma ideia que devia valer-se por si sem que outros tivessem necessidade de defender: Ser bom.

E que a tal senhora da esquadra encontre finalmente as coisas boas que procura.