sexta-feira, 30 de junho de 2017

Instalar ou não instalar antena parabólica, eis a questão. Ou uma reflexão sobre o estado da imprensa portuguesa - II

Fabrico de um ídoloNo tempo em que o jornal Record era trissemanário e A Bola era quadrissemanário, o debate do futebol não atingia os níveis de ordinarice e chinfrim do presente. A Bola sempre foi reconhecida como publicação de simpatia marcadamente benfiquista, reputação consolidada pela presença de redatores como Alfredo Farinha ou Carlos Pinhão que apesar das suas públicas preferências clubísticas eram notáveis homens de letras, escreviam magistralmente quer fosse na defesa da sua dama (o clube da Luz), quer fosse fora do ambiente jornalístico. Conhecido como “A Bíblia” pela sua popularidade mas também pela qualidade dos seus artigos, muitos escritos pela notável pena dos jornalistas acima mencionados mas também com ilustres escritores como Homero Serpa ou Aurélio Márcio, era um jornal que ensinava os portugueses.

O Record começou como contrapeso ao jornal da Travessa da Queimada tendo tido o conhecido sportinguista Artur Agostinho como diretor nos anos 60 e 70 mas virou declaradamente para os “encarnados” nos anos 80 quando Rui Cartaxana foi nomeado diretor, iniciando uma “dinastia” benfiquista que se prolongou pelos pontificados de João Marcelino, José Manuel Delgado e João Querido Manha. Percebeu-se que a linha editorial deste jornal era diferente das antecessoras pois nas suas colunas não faltavam artigos ácidos de acusação a roçar o impropério virados para os rivais da Segunda Circular ou das Antas, uma prática que escalou e transformou-se em lamentáveis lavagens de roupa suja que nada dignificada a classe profissional nem os pergaminhos do jornal. Atingiu o cúmulo da vulgaridade ao ser adquirido pelo grupo Cofina, firma responsável por outro título hediondo da imprensa portuguesa – o Correio da Manhã.

Entretanto os jornais passam a ser publicados diariamente por via das necessidades de tesouraria, não há país desportivo suficiente para alimentar três grandes diários desportivos (o portista O Jogo passou a entrar nas contas como concorrente a Norte) mas há que vender e portanto há que encher as páginas com palavras cativantes. Os artigos de opinião começam a ser cada vez mais inflamados e os portugueses ficam cada vez mais intoxicados pelas mensagens de ataque, já não se defende apenas o clube antes se enxovalha o rival. A notícia, afinal o ingrediente essencial do jornal, cai para segundo plano, a crónica torna-se tendenciosa, o comentário parcial. A manchete tem uma só cor independentemente da relevância do facto, há um só credo, um só pensar, o resto é vulgarizado, até desprezado. Chega a internet e o leitor opta pelo conforto gratuito do computador portátil em vez de gastar €0.80 a sujar os dedos de tinta. Novo rombo nas contas dos jornais, despedimentos, profissionais das letras cada vez mais receosos dos seus futuros, o espectro do desemprego a pairar, o “temos de vender” que se calhar empurra o código deontológico para o fundo da gaveta se tal garantir o posto de trabalho. Por fim e em conformidade com as políticas adotadas e a matriz subserviente do tuga, vem a subjugação em prol das tiragens – transformar-se em órgão informativo oficioso dum clube.

Naturalmente que não se pode usar um jornal desportivo nacional como panfleto de propaganda ou manifesto clubístico, ao fim e ao cabo ainda há uns bons milhões de portugueses que não papam desse grupo, então a tática adotada foi: Dar relevo ao que vitoria o clube grande, enaltecer o que distingue, ignorar o que desvaloriza, branquear o que desprestigia. Inventam-se factos escudadas nas “fontes privilegiadas” e nas “informações recolhidas” em textos invariavelmente assinados de maneira conveniente pela “redação”, arquitetam-se novos deuses com dentes de leite e comemoram-se as suas transferências como de títulos arrecadados, festejam-se acordos de patrocínio (meros atos de gestão) como golos em finais europeias. Subtilmente aPrograma habitual de Ano Novo mensagem vai sendo passada, o que o clube grande faz é que importa, o que os outros fazem é inferior. Calendarizam-se entrevistas de fundo com o mesmo protagonista à imagem de um programa de atividades do clube – a manchete do dia de Ano Novo é mais certa do que a emissão do filme Sozinho Em Casa na noite de Natal. Cria-se uma onda de crença na irreversibilidade do processo que guindará ao triunfo final, o povo está na rua com galhardetes e cachecóis nos punhos em vez de cravos, os media (jornais, rádio, internet e inevitavelmente a televisão) afinam o bagaço ao som da mesma senha que é uma cartilha de em vez dum tema de Paulo de Carvalho, a doutrina é divulgada, a malta ensinada, a situação controlada. O futebol em Portugal é desporto de partido único.

Mesmo que a coisa corra mal, mesmo que surjam evidências que apontem a práticas ilegítimas do clube grande, está tudo tranquilo. Rapidamente a contra-informação trata de distrair o pessoal com areia antiga para os olhos, escusando-se a cumprir a sua missão de investigar e informar, antes assobiando para o lado como se o tema não fosse relevante. A imprensa vende a alma ao diabo por mais um punhado de euros, prostitui-se. O povo aparentemente bate palmas e pede bis. Pão e circo. Assim se ilude e estupidifica uma gente.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Instalar ou não instalar antena parabólica, eis a questão. Ou uma reflexão sobre o estado da imprensa portuguesa - I

PaineleirosEsta é a quinta minha casa em Varsóvia. A primeira era junto à estação de Metro Wilanowska e lá morei com a minha primeira namorada polaca, depois passei para Natolin onde passei três estrondosos anos até que me mudei para Bemowo para partilhar teto com a minha segunda legítima e daí saltei rapidamente para Tarchomin naquela que foi a minha habitação mais duradoura. Agora estou radicado em Bielany depois de ter juntado os trapinhos com a Lena e pela primeira vez posso instalar uma antena parabólica numa casa partilhada, felizmente o apartamento está virado para poente e esta orientação permite a instalação do equipamento necessário para eu acompanhar a atualidade do meu país. Já chamei o técnico e conto as horas que faltam para poder ouvir o idioma de Camões ecoar na sala de estar.

Há algum tempo deixei de consultar jornais portugueses porque a imprensa portuguesa desceu a um lamaçal para o qual recuso contribuir, notícias sensacionalistas, muito fake news, textos copiados de outras publicações sem a devida referência, afinal o reflexo da crise de pensamento crítico que grassa em Portugal. As pessoas adotaram o facebook como fonte de conhecimento por dar menos trabalho, demitiram-se da função de refletir e funcionam como meros retransmissores do que lhes é enfiado pelos olhos e ouvidos abaixo. Por estas e outras razões o sinal televisivo de Portugal é indispensável para eu saber o que se passa na minha terra, a televisão consegue ser mais fiel à proveniência da notícia, posso calmamente evitar o comentário muitas vezes parcial de “paineleiros” engajados de acordo com as suas preferências clubísticas e crio o meu próprio juízo com menos influência exterior do que através da imprensa escrita.

Porque adoro futebol, a televisão é essencial para seguir a Liga Portuguesa e o meu Sporting (enquanto o Farense se encontra fora dos grandes palcos), perceber como está a ser preparada a nova temporada, quem vem e quem sai e também as movimentações dos outros clubes. Para minha grande infelicidade não tenho grandes hipóteses de saber o que realmente se está a passar porque constato que no domínio do futebol a imprensa (escrita e falada) está altamente instrumentalizada e a informação isenta nunca chega ao ouvinte/leitor. Não é possível ao consumidor de informação formar uma opinião objetiva com base naquilo que lhe é dado porque está tudo viciado. É inacreditável o vergonhoso estado de servilismo a que os media portugueses chegaram com maior vexame sendo protagonizado pela imprensa desportiva, a despudorada complacência com que aceitam os ditames impostos por um maestro que, ao movimento duma batuta, introduz no tema as trompetes, percussão ou violinos que interessam tocar consoante o som que seja conveniente ouvir no momento.

A imprensa é considerada “O Quarto Poder”, formata povos, cria opinião, faz e destrói ídolos, políticos, modas, mitos. Uma imprensa controlada é um povo manipulado, subordinado. Não há melhor maneira de se fazer assimilar um conceito do que através da repetição sistemática na imprensa, se o virmos repetidamente começamos a acreditar nele, a Prismas diferentesrespeitá-lo, a aceitá-lo. Não importa se é verdade, a ideia tantas vezes é repetida que acabamos por a assimilar como verdadeira. Foi assim que George W. Bush derrubou Saddam Hussein, foi assim que Deu-La-Deu Martins ludibriou os castelhanos, é assim que se mantém um povo inteiro em delírio. Naturalmente que os portugueses não são tão idiotas como os norte-americanos nem tão historicamente inapto como os castelhanos (ou seus legatários), porém quando toca a futebol todo o discernimento se dissolve. Gente por natureza tranquila e ponderada transforma-se em samurais armados até aos dentes em defesa do seu emblema e nessa bebedeira mesmo pessoas que eu considero inteligentes conseguem mandar bojardas capazes de fazer o planeta parar de girar. O mais curioso é que nem sempre foi assim, antigamente falava-se de bola com amigos de clubes rivais sem qualquer melindre, celebravam-se as vitórias próprias e respeitavam-se as derrotas alheias, coexistia-se sem problemas. Depois surgiram programas televisivos de debate, uma boa ideia em teoria mas que na prática acabou por ser um detonador de insultos e um instigador de conflitos. Em vez de se convidarem jogadores chamaram advogados, em vez de convocarem treinadores trouxeram políticos. Gente de fato e gravatas com palavras de cem euros, a receita infalível para impressionar o tuga (diz coisas que eu não entendo, logo fala bem portanto tem razão no que diz). Não falam de remates porque discutem lances polémicos, não falam de defesas porque criticam arbitragens, não comentam estratégias de campo porque debatem penáltis. Polémica, barulho, algazarra. Como na Fuzeta, quem fala mais alto é que tem razão. É assim que se discute futebol em Portugal e os media aproveitaram a onda para fazer subir o share afogando os portugueses em controvérsia e confusão. Fala-se mais da atuação dum avençado comentador desportivo no programa de terça à noite do que duma jogada duma partida qualquer de domingo à tarde, declarações de um “paineleiro” têm mais impacto do que um ajuste tático brilhante que vira um jogo. Nomes dantes obscuros e insignificantes como André Ventura, Rui Oliveira e Costa, Sílvio Cervan ou João Gobern começaram a ter protagonismo, até mais do que os próprios jogadores. Houve quem tivesse compreendido que se falava mais do que o “paineleiro” disse do que o que o futebolista fez, houve pois quem tivesse percebido isso e que tivesse começado a apostar nessa estratégia.