quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Postais da Polónia - 23

Jardim urbanoO pior momento da carreira de um futebolista, mesmo amador, ao contrário do que se pensa, não são as lesões nem o seu final propriamente dito. É o início da temporada seguinte à sua retirada. Consulta-se instintivamente o relógio quando o corpo sente chegar a hora do treino, caminha-se sem querer para a gaveta onde está arrumada a roupa do treino, olha-se para o cimo do armário da cozinha onde estão os boiões da creatina e dos aminoácidos, perscruta-se a varanda à procura do saco das chuteiras para por fim soltar uma lufada de ar dos pulmões em frustração dizendo para os botões: “Não, não, meu caro amigo. Isso já acabou e tens de arranjar outra coisa para fazer. Vai para o ginásio ou mete-te em cima duma bicicleta porque já não tens cabedal para essa vida dos futebóis”.

Como eu não gosto de ginásios porque não aprecio desporto em recinto fechado, a alternativa que a consciência ditou foi a bicicleta que é uma excelente invenção porque serve de meio de transporte e ao mesmo tempo queima-nos calorias. Deste modo comecei a rodar pelas ruas de Chomiczówka que é como o meu bairro se chama, estendi progressivamente o raio de ação primeiro ao antigo aeroporto militar de Babice, depois ao forte que dá nome à freguesia vizinha de Bemowo. Entretanto a Lena também comprou uma bina e aderiu aos meus passeios que passaram a ter percursos como o Bosque de Bemowo, onde ao passarmos ao largo da composteira de Radiowo a minha comadre ia caindo da bicicleta quando nos cruzámos com um javali que por lá procurava alimento, onde existem duas reservas naturais nas quais residem os ditos javalis, esquilos e outra bicharada incomum nas paisagens algarvias e onde estão situados uma série de pequenos talhões de terreno que sempre me intrigaram.

As grandes cidades da Polónia, pelo menos as capitais de distrito, têm parcelas de terreno a que chamam Ogród Działkowy – algo como Jardim Urbano. Durante o regime socialista, estes terrenos foram cedidos pelo município a empresas que por sua vez os passavam a funcionários como bónus, uma regalia concedida a um colaborador que se destacasse no seu emprego e que conferia o usufruto do terreno como se fosse seu. Nesses talhões as pessoas podiam cultivar pequenas hortas ou apenas arrelvar um jardinzinho para embelezar a área onde às vezes se erguia uma construção básica (geralmente de madeira) na qual se passavam fins de semana de verão – porque a construção nunca oferecia condições para ser habitada de inverno. É frequente vermos enormes manchas verdes inusitadamente próximas de áreas densamente habitadas e se aproximarmos o Google Earth dessas áreas conseguimos descortinar as delimitaçõesJardins de Piaski dos talhões e as pequenas casinhas de férias de muitos polacos, em algumas cidades como Rzeszów vi este tipo de estruturas em pleno centro urbano.

Mesmo falando com muitos amigos e alunos não fiquei com uma ideia concreta de como as suas famílias obtiveram o direito a gozar do terreno, uns dizem que veio do avô que trabalhava na empresa XYZ e que o recebeu por esse motivo, outros contam que o tio assinou um contrato de usufruto que expira passados 99 anos mas o certo é que ninguém é proprietário desses terrenos – nem poderia ser porque no tempo da PRL (República Popular da Polónia) não havia propriedade privada. O certo é que muitos polacos gozam das suas “casas de férias” comodamente plantadas em áreas apetitosas da cidade nas quais vão caindo os olhos gulosos das construtoras. Os municípios resiste à pressão imobiliária e vai garantindo aos cidadãos um espaço de reset com contacto direto com a natureza onde se pode jardinar tranquilamente ou refugiar-se da agitação citadina.