quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

De um fim de manhã difícil de adjetivar


Já dizia Miguel Esteves Cardoso que os períodos assim-assim são os mais difíceis de suportar, não têm o épico dos grandes momentos nem a profundeza histórica das tragédias funestas, são tempos cinzentos, baços, discretos dos quais nada digno de realce há a apontar. Corre agora um rio de tempos assim, de caudal manso e pardo tal como o céu de Varsóvia, cinza e bisonho que não é pão nem bolo, não é céu de inverno porque esse até é mais limpo nem é céu de primavera porque não despeja sol na cidade. Antes tapa-a com um lenço grosso de fraqueza como se abafasse as pessoas privando-as de ar e de vontade, deixando-as apagadas e sem chama. É o devir deste inexorável clima, chupa todo o sangue e a alma das gentes até que estas se transformem em ambulantes sacos de ossos e pele que vagueiam pelas ruas em piloto automático. Os novos combatem este estado de coisas com telemóveis conectados a amigos e redes sociais, palram combinando encontros ou comentam publicações, outros fumam violentamente enquanto sobem as cruéis escadarias da rua Obożna. Os meões de idade, ou quase meão no meu caso, andam no fio da navalha arriscando a queda na depressão se não reagem categoricamente ao estado de moleza que o tempo impõe, a disputa entre querer voltar para casa e o aborrecimento depois de ter lá chegado consome a maior fatia do tempo livre e não é aconselhável martelar muito sobre o tema.

Já houve algumas manifestações a uns extemporâneos raios de sol aqui há um par de dias, cantaram-se logo odes à primavera e ao bom tempo que já aí vem e vitoriando o soalheiro fim de semana que se prevê. Contentam-se com pouco, penso eu com a experiência de uma trintena e pouco de anos passados a curtir a pele ao sol algarvio, compreendendo a euforia algo desmedida mas pondo água na fervura ao olhar para o calendário. As folhas estão em fevereiro e a norma diz que este é um dos meses mais frios do ano, excecionalmente passamos mais de metade do mês acima de zero graus, não neva desde não me lembro quando, mas isso não significa que já se pode tirar as sacas de carvão da dispensa e preparar os churrascos típicos do advento primaveril, recordo-me muito bem de não muito pretéritas tardes de abril em que a primavera já era adulta e eu ainda apanhava com flocos de neves nas ventas, por isso tenho modero sempre o otimismo quando espreita o sol apesar de em meu redor as pessoas já andarem frenéticas.

O inverno não tem sido mau, não temos tido aquelas noites polares de -20º C que congelam a cartilagem da orelha e acho que só por uma meia-dúzia de vezes usei cachecol. As ceroulas só foram ponderadas uma vez, dormi sempre de cobertor escusando o edredão de penas a trabalhos forçados, não está a ser dos invernos mais rigorosos que passei. Mesmo assim, acho que prefiro esses dias de barbeiro do que os dias que correm em que nada há de bom nem de mau. Antes pelo contrário.

PS – Quer dizer, até houve. Houve um chocolate tático que Mourinho deu em Nou Camp. Há pessoas – portugueses, digo – que insistem em minorar os feitos de José Mourinho e Cristiano Ronaldo. Esses cegos, para não lhes chamar estúpidos, não devem (ou são mentecaptos o suficiente para não conseguirem) compreender que estes nossos dois compatriotas devem ser os únicos agentes com dimensão global que contrariam a imagem internacionalmente acolhida de que Portugal é uma terra de corruptos, incompetentes e preguiçosos. Mourinho e Ronaldo são embaixadores mundiais do talento português, da qualidade portuguesa e do saber português. Tapar estas virtudes com ninharias de “o Cristiano é vaidoso” ou “o Mourinho é arrogante” é de uma tacanhez e de uma infelicidade de espírito indescritível, particularidades das quais o meu país está infelizmente a abarrotar. Tomara eu que tivéssemos Mourinhos e Cristianos no Parlamento...

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Fundamentalismos alimentício-culturais

chá com leite Naqueles horríveis dias que passei em Paris, das poucas coisas que me consolaram foi o pequeno-almoço do hotel, não que fosse algo distinto, mas era abundante em termos de pães e doces, croissants e charcutarias, tinha uma gama interessante de sumos de fruta e leite e café com fartura. Fazia dessa refeição a mais importante e mais dilatada porque era boa e grátis, o custo de vida em Paris é uma loucura para a carteira de um professor de línguas radicado em Varsóvia, mesmo que os “restôs” que frequentasse estivessem situados no setentrional 18º bairro parisiense que começa na Porte de Clignancourt e se estende sombriamente para sul até surgirem pontos de interesse como o Moulin Rouge, casa onde me pediram dezasseis contos de réis de entrada quando eu trabalhava no parque então denominado EuroDisney, idos de 1993, ou a Basílica do Sacré-Cœur de onde se pode ter uma vista mais abrangente da capital francesa da qual se destaca o mamarracho Montparnasse, considerado o segundo edifício mais feio do mundo. Então, vamos lá conversar sobre esse pequeno-almoço.

Não posso deixar de frisar o quão mau foi para mim passar seis dias de clausura em Paris, terra que acalenta o sonho de muita gente, a cidade do amor, da luz, das baguettes, do raio que parta os franceses, povo mais chato, arrogante e presunçoso que tem uma língua gay irritantemente cheias de “õs” e “ãs” e uma seleção de futebol cujos títulos ganhos deve-os a imigrantes de primeira e segunda geração. Nada na França me cativa (só talvez a Disneyland Paris mas o parque de francês não tem nada) e de cada vez que atravessei o país de De Gaulle cheirei sempre sarilhos. A autoestrada é caríssima, o combustível também, se abdicarmos da autoestrada viajamos por uma paisagem que não tem nada de interessante tirando a pausa que fiz em St Jean de Luz na última viagem, nem a cuisine francesa me seduz, tendências modernas de doses pequenas não satisfazem o paladar dum raspa-tachos como eu habituado às consistentes sopas da minha avó. O pequeno-almoço francês também obedece a uma regra elementar que eu ignorava até ter vivido esta minha malfadada aventura gaulesa: o croissant só se come com coisas doces.

De faca cheia de manteiga na mão, preparava-me para barrar uma das metades do croissant quando fui advertido: “Alto! Que vais fazer?” Pensava que tinha escolhido mal o talher, olhei em volta para confirmar a certeza da opção e encolhi os ombros enquanto dizia que “vou comer. Não posso?”

- Mas vais comer o quê? O croissant com manteiga?

- Não só com manteiga, vou comê-lo com fiambre também.

- Não, não, não! Os croissants não se comem assim, comem-se com geleias, compotas, coisas doces. Isso é profanar o croissant!

- Mas qual é o mal de comer o croissant com fiambre? Em Portugal come-se assim tal como se come com salsicha, com ovos moles e amêndoa, com queijo, com...cerveja com xarope de amora

- Basta! O croissant come-se com doce! Se não o queres comer assim não o comas de todo, pelo menos à minha frente.

Decidi não alimentar ódios e desisti da ideia inicial ficando, no entanto, com aquela demonstração de fundamentalismo alimentar a remoer a moleirinha. Meses mais tarde, em conversa com um polaco, falávamos de povos bebedores de café (como o povo português) e bebedores de chá (como o polaco) e ele pergunta-me assim: “E tu, Nuno? Bebes chá com leite ou sem?”. Eu que só toco numa chávena de chá quando sou atacado por febres que o paracetamol não vence respondi decidido que “eu não bebo chá. Não é que não goste mas não tenho esse hábito”. O meu interlocutor voltou à carga: “Mas quando bebes, é com leite ou sem?”. Resolvi saciar-lhe o desejo receando que o interrogatório se perpetuasse e “epá... se calhar com um bocadinho de leite”. Rebentou a guerra.

- Mas como com leite?! Isso dá cabo do chá, fica o chá a saber a água suja. Não podes beber chá com leite.

- Está bem, calma. Assim como assim, eu não percebo nada de chá. Não sei qual é a diferença entre um Darjeeling e um Earl Grey, para mim é igual ao litro.

- Mas não bebas o chá com leite, isso é inaceitável.

Mais uma vez calei-me. De chá não percebo nada – haverá algarvios que bebam chá? - e qualquer polaco me dá 10-0 no tema. Entretanto a conversa derivou para outros temas mais mundanos e universais, parte daquilo a que eu designo como o meu mester, e o tópico mudou-se para cerveja, marcas, acompanhamentos, fermentações, graduações, com ou sem xarope... e aí atirei-me eu: “O quê?! Cerveja com xarope? Explica-me lá essa”. O polaco com que eu estava a falar acusou o toque, percebeu onde eu queria chegar e começou numa voz atabalhoada:

- Sabes? Às vezes apetece uma cerveja mas não apetece saborear a cerveja porque ela é amarga, desagradável, então juntamos um pouco de xarope de amora ou de gengibre para ficar mais docinha.

- Pela minha rica saúde! Vocês juntam xarope à cerveja porque não gostam do sabor da cerveja?

- Sim, é um pouco isso.

- Então não peçam cerveja! Peçam outra coisa qualquer, peçam uma Fanta ou uma 7up.

- Mas a cerveja mata a sede, só que é amarga.

- Vai-te encher de moscas! Vocês empurram pepinos azedos com shots de vodca, uma combinação que quase faz andar motores diesel, espetam com couve semi-apodrecida em todos os pratos típicos, bebem kefir que é um veneno para curar a ressaca, besuntam-se com pasta de rábano que é uma coisa que faz faíscas nos dentes e dizes que a cerveja é amarga? Pelo amor da minha santa mãezinha...

Foi o fim do tema. O meu amigo polaco ficou sem maneira de explicar tal incoerência de forma convincente, porque é que não se pode beber chá com leite mas pode-se beber cerveja com xarope - eu nem quis mencionar o pormenor hiperabichanado de alguns homens beberem-na de palhinha -, e eu decidi que sempre que tiver ou quiser beber chá fá-lo-ei com um farrapo de leite. Mas ele que não me apareça com uma imperial cor-de-rosa que leva logo com um gato fedorento pelos beiços!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Hiato

Polónia Antiga Um escrito famoso disse em tempos que o objeto mais precioso para ele era a borracha. Não o lápis com o qual ele rascunhava as ideias e os pensamentos, não a caneta de que se servia para perpetuar esses elementos de escrita, mas a borracha que se ocupava de apagar as palavras mal medidas ou os pensamentos mais descompostos. Se a borracha é o instrumento mais valioso para um escritor então a tecla DELETE deve ser o equivalente para um bloguista.

Acredite que é com pena que não escrevo com mais frequência e às vezes penso na falta de consideração para com o leitor, deixá-lo à espera de novidades ou de um artigo que o entretenha. Mas escrever sobre o quê?

- Sobre a tua vida na Polónia, cretino! Como pode um país assim tão diferente do teu cessar de dar motivos para se escrever?

Realmente, este terra é um manancial de temas que nunca mais acaba, quase todos os dias sucedem coisas que nunca hão-de acontecer em Portugal ou em qualquer outra nação do ocidente europeu, como a nova lei das faturas e vendas a dinheiro que obriga cada contribuinte a manter em seu poder durante cinco anos, não sendo importante se se trata do recibo de compra dum plasma de 70 polegadas ou de uma imperial e um pires de arenque em vinagre ou a Kolęda, a visita que cada padre faz ao seu rebanho por alturas do Natal e que me deixa sempre no dilema entre ser bem-educado e convidá-lo a entrar mesmo que eu já saiba que as minhas respostas às perguntas do pároco irão cada vez mais abrir-lhe a boca, não de fome porque durante a kolęda os curas são opiparamente alimentados pelos fiéis desejosos de lhes contar relatos e provas de quão praticantes são, despejando talhadas de fiambres e outras charcutarias pela eclesiástica goela abaixo numa tentativa de comprar a simpatia do Criador através da satisfação gástrica do seu representante, mas de pasmo por ter diante de si um ser atlântico quase quarentão que renega divindades, não lhe apresenta bandejas de carnes frias nem cestas de frutas frescas, muito menos um licorzinho de bagas silvestres destilado num alambique caseiro, portanto ilegal, ao qual o sacerdote não se nega mesmo que seja contra os cânones do clero, não lhe canta loas nem lhe fala da velha e relha estória do casamento e procriação.

Os tempos aqui são de repriorização de objetivos, restabelecimento de metas e redefinição de focos de ação. 2013 começou com novidades inesperadas que obrigaram a embaralhar as cartas e dá-las de novo, por isso a atenção tem estado mais voltada para as questões de índole laboral porque essas é que me fazem comprar melões, um homem pode sobreviver com muita trampa mas não pode fazê-lo sem trabalho e enquanto a faísca da saúde não me faltar tem de ser por esse diapasão que afino.

Por isso e por outros motivos que não vale a pena trazer à colação, peço-lhe, leitor, um bocadinho de paciência. Tenho uma amiga que me explicou esta falta de tema, comparou-a à crise do Sporting, que os grandes também passam mal mas que inevitavelmente renascem das cinzas como fénixes e que eu só tinha de esperar. Assim como outro grande escritor definiu numa obra sua a origem dos melhores livros: Esperar que venha uma ideia, não forçar mas esperar, e se ela não vier espera-se mais um pouco.

Portanto…