segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Fundamentalismos alimentício-culturais

chá com leite Naqueles horríveis dias que passei em Paris, das poucas coisas que me consolaram foi o pequeno-almoço do hotel, não que fosse algo distinto, mas era abundante em termos de pães e doces, croissants e charcutarias, tinha uma gama interessante de sumos de fruta e leite e café com fartura. Fazia dessa refeição a mais importante e mais dilatada porque era boa e grátis, o custo de vida em Paris é uma loucura para a carteira de um professor de línguas radicado em Varsóvia, mesmo que os “restôs” que frequentasse estivessem situados no setentrional 18º bairro parisiense que começa na Porte de Clignancourt e se estende sombriamente para sul até surgirem pontos de interesse como o Moulin Rouge, casa onde me pediram dezasseis contos de réis de entrada quando eu trabalhava no parque então denominado EuroDisney, idos de 1993, ou a Basílica do Sacré-Cœur de onde se pode ter uma vista mais abrangente da capital francesa da qual se destaca o mamarracho Montparnasse, considerado o segundo edifício mais feio do mundo. Então, vamos lá conversar sobre esse pequeno-almoço.

Não posso deixar de frisar o quão mau foi para mim passar seis dias de clausura em Paris, terra que acalenta o sonho de muita gente, a cidade do amor, da luz, das baguettes, do raio que parta os franceses, povo mais chato, arrogante e presunçoso que tem uma língua gay irritantemente cheias de “õs” e “ãs” e uma seleção de futebol cujos títulos ganhos deve-os a imigrantes de primeira e segunda geração. Nada na França me cativa (só talvez a Disneyland Paris mas o parque de francês não tem nada) e de cada vez que atravessei o país de De Gaulle cheirei sempre sarilhos. A autoestrada é caríssima, o combustível também, se abdicarmos da autoestrada viajamos por uma paisagem que não tem nada de interessante tirando a pausa que fiz em St Jean de Luz na última viagem, nem a cuisine francesa me seduz, tendências modernas de doses pequenas não satisfazem o paladar dum raspa-tachos como eu habituado às consistentes sopas da minha avó. O pequeno-almoço francês também obedece a uma regra elementar que eu ignorava até ter vivido esta minha malfadada aventura gaulesa: o croissant só se come com coisas doces.

De faca cheia de manteiga na mão, preparava-me para barrar uma das metades do croissant quando fui advertido: “Alto! Que vais fazer?” Pensava que tinha escolhido mal o talher, olhei em volta para confirmar a certeza da opção e encolhi os ombros enquanto dizia que “vou comer. Não posso?”

- Mas vais comer o quê? O croissant com manteiga?

- Não só com manteiga, vou comê-lo com fiambre também.

- Não, não, não! Os croissants não se comem assim, comem-se com geleias, compotas, coisas doces. Isso é profanar o croissant!

- Mas qual é o mal de comer o croissant com fiambre? Em Portugal come-se assim tal como se come com salsicha, com ovos moles e amêndoa, com queijo, com...cerveja com xarope de amora

- Basta! O croissant come-se com doce! Se não o queres comer assim não o comas de todo, pelo menos à minha frente.

Decidi não alimentar ódios e desisti da ideia inicial ficando, no entanto, com aquela demonstração de fundamentalismo alimentar a remoer a moleirinha. Meses mais tarde, em conversa com um polaco, falávamos de povos bebedores de café (como o povo português) e bebedores de chá (como o polaco) e ele pergunta-me assim: “E tu, Nuno? Bebes chá com leite ou sem?”. Eu que só toco numa chávena de chá quando sou atacado por febres que o paracetamol não vence respondi decidido que “eu não bebo chá. Não é que não goste mas não tenho esse hábito”. O meu interlocutor voltou à carga: “Mas quando bebes, é com leite ou sem?”. Resolvi saciar-lhe o desejo receando que o interrogatório se perpetuasse e “epá... se calhar com um bocadinho de leite”. Rebentou a guerra.

- Mas como com leite?! Isso dá cabo do chá, fica o chá a saber a água suja. Não podes beber chá com leite.

- Está bem, calma. Assim como assim, eu não percebo nada de chá. Não sei qual é a diferença entre um Darjeeling e um Earl Grey, para mim é igual ao litro.

- Mas não bebas o chá com leite, isso é inaceitável.

Mais uma vez calei-me. De chá não percebo nada – haverá algarvios que bebam chá? - e qualquer polaco me dá 10-0 no tema. Entretanto a conversa derivou para outros temas mais mundanos e universais, parte daquilo a que eu designo como o meu mester, e o tópico mudou-se para cerveja, marcas, acompanhamentos, fermentações, graduações, com ou sem xarope... e aí atirei-me eu: “O quê?! Cerveja com xarope? Explica-me lá essa”. O polaco com que eu estava a falar acusou o toque, percebeu onde eu queria chegar e começou numa voz atabalhoada:

- Sabes? Às vezes apetece uma cerveja mas não apetece saborear a cerveja porque ela é amarga, desagradável, então juntamos um pouco de xarope de amora ou de gengibre para ficar mais docinha.

- Pela minha rica saúde! Vocês juntam xarope à cerveja porque não gostam do sabor da cerveja?

- Sim, é um pouco isso.

- Então não peçam cerveja! Peçam outra coisa qualquer, peçam uma Fanta ou uma 7up.

- Mas a cerveja mata a sede, só que é amarga.

- Vai-te encher de moscas! Vocês empurram pepinos azedos com shots de vodca, uma combinação que quase faz andar motores diesel, espetam com couve semi-apodrecida em todos os pratos típicos, bebem kefir que é um veneno para curar a ressaca, besuntam-se com pasta de rábano que é uma coisa que faz faíscas nos dentes e dizes que a cerveja é amarga? Pelo amor da minha santa mãezinha...

Foi o fim do tema. O meu amigo polaco ficou sem maneira de explicar tal incoerência de forma convincente, porque é que não se pode beber chá com leite mas pode-se beber cerveja com xarope - eu nem quis mencionar o pormenor hiperabichanado de alguns homens beberem-na de palhinha -, e eu decidi que sempre que tiver ou quiser beber chá fá-lo-ei com um farrapo de leite. Mas ele que não me apareça com uma imperial cor-de-rosa que leva logo com um gato fedorento pelos beiços!

3 comentários:

Zé de Fare disse...

Beber cerveja de palhinha? Desconhecia. Coisa de países frios.

Ricardo Leal disse...

Das melhores coisas que já li sobre a Polónia e os hábitos alimentares. Só falta mesmo o pormenor de quando comemos arroz batatas e carne no mesmo prato. Eles ficam burros a olhar para nós! Mas em relação ao que disseste não retiro uma virgula.

Sem querer falar também no facto de sobretudo as Polacas beberem Malibu com Leite. Algo que me dá a volta ao estômago só de pensar em juntar álcool com leite :P

Um abraço e continua a escrever porque vale a pena.

zekarlos disse...

Croissant com fiambre e manteiga, adoroooo! Ehehe