terça-feira, 28 de março de 2017

Postais da Polónia - 22

A Rotunda antes do encerramentoFoi quando corria o verão de 2008 para o fim, numa fase em que eu gozava fortemente os prazeres da vida de solteiro em Varsóvia, que conheci a Sylwia, uma deslumbrante loura de olho azul petróleo. Estava a dançar no Klubokawiarnia, poleiro garantido das minhas noites de quinta a sábado, ela passou por mim a primeira vez e eu fiquei de boca aberta. Era a figura mais bela que eu alguma vez tinha contemplado, o adjetivo “linda” não lhe fazia jus. Apesar de se dirigir à casa de banho com uma garrafa de Carlsberg na mão, percebi nela uma graciosidade que nunca tinha encontrado, uma feminilidade tão intensa que imediatamente me cativou. Fiquei apaixonado. É certo que naquele tempo eu apaixonava-me com a mesma frequência que o Bas Dost empurra o repolho para o saco, mas aquela mulher matou-me. Quis meter conversa com ela mas como na altura não falava polaco decidi que arriscava em inglês se ela à volta me desse chance. E ela voltou, passou por mim, olhou e seguiu em frente. Desanimei. Ela voltou, passou mesmo à minha frente mas não olhou. Fiquei fulo, “esta gaja está a brincar com o fogo”. Voltou mais uma vez, olhou para mim… e sorriu. “Já foste!”, pensei. Fui atrás dela, encaixei-a a um canto e apesar de não falar polaco e dela não falar inglês não descansei enquanto não fiquei com o número de telefone dela. Afinal quem tem boca vai a Roma e Varsóvia até fica mais longe do que a capital italiana.

Mais tarde combinámos um café para nos conhecermos melhor e tal e coiso e através de SMS trocadas com a ajuda dum dicionário obsoleto e da péssima assistência que o Google Translate prestava ao tempo decidimos encontrar-nos na Rotunda, o ponto de encontro favorito dos varsovianos, que fica não muito longe da estação de metropolitano Centrum. Como o nome indica, é um local central e de fácil acesso, onde o pessoal gosta de se reunir antes de atacarem os bares, restaurantes ou boîtes da Baixa… digo, do Centro. Nesse tempo o meu compincha Mário morava num edifício alto em frente ao Palácio da Justiça, menos de um minuto a pé do ponto de encontro com a Sylwia, por isso passei por casa dele para uma cerveja e matar um pouco de tempo conversando acerca das minhas eufóricas impressões sobre o meu primeiro verão passado em Varsóvia. Uma conversa que ele ouvia com satisfação por já saber do que a casa gastava – ele já tinha alguns verões em Varsóvia no cabedal e todas asExplosão de 1979 aventuras que lhe contava ele já as tinha vivido na primeira pessoa. Quando faltavam uns cinco minutos para a hora recebo uma mensagem com um texto que compreendi à primeira mesmo que naquela época o meu domínio de polaco fosse um pouco mais do que inexistente e que rezava mais ou menos assim:

- São 19:55 e não estás cá, por isso vou para casa.

Cuspindo a cerveja saí disparado à medida que escrevia uma macarrónica desculpa em polaquinglês e valeu-me que a rapariga teve paciência, esperou mais meio minuto por mim e o filme teve um final feliz. Com esta lição aprendi que a pontualidade portuguesa não tem lugar na Polónia se queremos cair nas boas graças das raparigas e que até é conveniente chegarmos antes do tempo combinado se queremos faturar pontos de simpatia.

Foi com esta aventura que me estreei na “Rotunda”, um singular edifício em forma de círculo que servia de dependência do banco PKO desde 1966 e que era o sítio favorito para os varsovianos se encontrarem devido à facilidade de acessos providenciada pela proximidade de paragens de autocarro e elétrico bem como da já mencionada estação de metropolitano. Situado na rotunda Dmowskiego, unanimemente considerada o “miolo” de Varsóvia, a “Rotunda” ficava à entrada da rua pedonal Chmielna por onde se chega à zona nobre da rua Nowy Świat e aos seus restaurantes e cafés. Seguindo o bom hábito varsoviano combinei muitas vezes encontrar-me com pessoal naquele lugar, às vezes chegava mais cedo para ver pessoas amigas saudarem-se calorosamente, namorados abraçarem-se com fervor, desconhecidos cumprimentarem-se pela primeira vez. Era uma coisa muito varsoviana que mesmo sem ser nada de especial representava para mim um passo importante na minha adaptação e no reconhecimento de Varsóvia como um dos seus, sempre que eu propunha o rendez-vous na “Rotunda” a ideia era imediatamente aceite e isso deixava-me com a impressão que as pessoas me davam crédito.

Rotunda atualmente - Foto Gazeta Wyborcza onlineEscrevi o parágrafo anterior dominantemente no tempo pretérito porque a “Rotunda” já não existe. O edifício sofreu com a violenta explosão de gás de 1979 – acidente onde perderam a vida 49 pessoas. A estrutura ficou de tal forma abalada pela violência da explosão que se considerou reconstruir o edifício de raiz, decisão que se revelaria crucial para o destino da Rotunda; o edifício ficou marcado para demolição visto a fachada do prédio ter sido alterada no restauro após o acidente e não coincidir com o traçado original. A deliberação foi tomada em 2015 e os trabalhos de desmantelamento da Rotunda começaram este ano. Porém, o organismo camarário responsável pela conservação e restauro do património revogou essa decisão atendendo a que a fachada corresponde de facto ao que consta no plano original e os trabalhos foram suspensos deixando a Rotunda com um aspeto de prédio despido de vida, um triste esqueleto metálico no âmago da Cidade Capital.

Dizem que há planos para revitalizar a Rotunda e torná-la de novo no ponto de encontro oficioso dos Varsovianos, dizem que há investidores decididos a recuperar um edifício que é inevitavelmente um símbolo de Varsóvia. Pelo valor sentimental que a Rotunda tem para mim e para todos os que diariamente vivem Varsóvia, é imperioso que se recupere a Rotunda e que se feche a cratera que se rasgou em pleno coração da capital polaca. Varsóvia sem a Rotunda é como Faro sem o Largo da Palmeira.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Quando comprar não significa necessariamente que se traga compras para casa

Há semanas eclodiu uma discussão, leia-se uma civilizada troca de pontos de vista, entre mim e uma aluna a propósito da tradução em polaco da palavra portuguesa “comprar”. Tudo isto porque eu traduzi o verbo de duas maneiras diferentes, contemplando os aspetos perfetivo e imperfetivo que tanto azucrinam os estrangeiros que tentam aprender polaco. Tudo porque eu disse:

- “Comprar” significa “kupić” (perf.) ou “kupować” (imperf).

Isto detonou a discussão e a pergunta da estudante.

- Mas, espera. Significa “kupić” ou “kupować”?

- (meio encavacado) E há diferença?

- Claro. “Kupić” usa-se quando tu compras alguma coisa e  “kupować” para o processo de comprar sem que necessariamente compres alguma coisa.

Aí fiquei completamente baralhado. Como é que se pode comprar sem necessariamente comprar? Ou compras ou não compras, não pode haver um verbo para “não comprar”, não há verbos que definam “não-acontecimentos”. Ainda debati este tema com mais uma ou duas pessoas até que finalmente me elucidaram e eu cheguei à conclusão de que este “kupować” significa algo como “ir às lojas”, tipo o nosso português “ver as montras”. Ou seja, não declarar a intenção de comprar mas também não descartando uma eventual compra caso se veja algo que se agrade. Andei matutando nesta situação até uma outra aluna col14467aocar luz sobre o caso e explicar-me esse tal processo de ir às compras sem comprar nada.

- São resquícios dos tempos socialistas, Nuno. Naquela era as pessoas iam às lojas mas não sabiam o que comprariam porque não sabiam o que lá havia. Podias ir com a intenção de comprar carne e voltar com arroz ou açúcar, podias sair de casa para comprar pão e regressar de mãos a abanar. Nunca se sabia o que se ia comprar porque nunca se sabia o que a loja tinha naquele dia. A única coisa que havia sempre era vinagre.

É curioso perceber como as culturas criam palavras para definir determinadas ações ou factos. Como em Portugal nunca experimentei dificuldade em comprar o que queria, desde que tivesse dinheiro, não imaginava que existisse em alguma língua do mundo um verbo que definisse “não-comprar” ou “comprar do que houver podendo acontecer que não se compre nada”

Cada vez me surpreendo mais com esta gente.