quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Perspetiva


Por intermédio de uma amiga conheci o Paweł, um rapaz de idade próxima dos dezasseis anos oriundo de perto de Olsztyn, a terra dos lagos, no nordeste da Polónia. Deu-me a ideia dum rapaz abatido, confortado com a vida que tem, sem grandes planos para o futuro nem aparente vontade em fazê-los mesmo que, como qualquer um de nós, desconhecesse se tem mais um ano de vida pela frente, mais dez, mais trinta ou mais sessenta. O Paweł tem um sorriso largo mas que não me pareceu franco, foi educado quando nos cumprimentou (a mim e à minha amiga) porém com ar de quem assim foi ensinado, a cumprimentar e a falar bem às pessoas mesmo se não tivesse vontade nem interesse. O pai do Paweł veio receber-nos muito contente por termos vindo, explicou muitas coisas sobre a família e a sua história, abria os braços para frisar a ideia e dar detalhe à narrativa. O Paweł não parecia impressionado com a lenga-lenga, até tinha aspeto de estar incomodado com aquilo tudo, com tanto pormenor, como se a sua privacidade estivesse a ser devassada pelo pai que contava a vida toda a estranhos, virava a cabeça ou sorria educadamente para não nos mandar à fava. Brilhavam-lhe os olhos quando falava de automóveis, de mecânica, do sonho de ter uma garagem própria e arranjar motores e suspensões. O pai reparava no desconforto do filho mas continuava a historiar, hesitava nos momentos mais difíceis, escolhia bem as palavras apesar de ser uma pessoa de formação académica modesta, escapava-se-lhe um impropério quando mencionava aspetos que ele considerava mais revoltantes mas rapidamente emendava a mão, pedia desculpa meio envergonhado e retomava o raciocínio procurando episódios mais alegres para aliviar o ambiente.

O Paweł é um doente oncológico, tem uma perna amputada, um cancro que já está localizado nos pulmões e tem metásteses em cada centímetro cúbico do corpo, está por semanas ou meses. Este rapaz de dezasseis anos nunca mais jogará futebol com os amigos da Mazúria, nunca limpará as mãos em desperdício depois de reparar um amortecedor, nunca sentirá aquele mel quente que nos invade quando se faz amor com uma mulher pela primeira vez, nunca terá uma moca daquelas marafadas depois dum charro, não lhe será dada a oportunidade de fazer merda e aprender com os erros, não lhe foi dado o famigerado 'livre arbítrio' que os católicos tanto gostam de mencionar como razão para os atos irracionais do Homem. Nada. Ao Paweł não lhe foi dado nada, foi-lhe arrancada uma perna, o cabelo, as ilusões, os sonhos, a inocência. O Paweł tem uma agulha de soro espetada no abdómen e uma espada cravada no coração, sabe que está a morrer mais depressa que os outros meninos da idade dele mas nem tem consciência que nunca mais voltará à sua casa, nunca mais brincará no seu quarto, nunca mais dormirá na sua cama.

Discutem-se penáltis e foras de jogo, lamenta-se que o Philip Seymour Hoffman tenha morrido tão novinho, coitado, fazem-se contas ao orçamento para pagar os luxos que são a internet, o telemóvel, o seguro do carro, umas calças de ganga novas, um blusão para a neve, lamenta-se chorosamente que ele é insensível e não lhe dá atenção ou que ela é a rainha do drama e incapaz de pensar com lógica. Enquanto isso o Paweł definha.

Nunca o cliché 'pôr as coisas em perspetiva' foi tão bem aplicado como quando conheci o Paweł, um rapaz que provavelmente não verá as flores frescas da primavera deste ano, não gozará a sombra duma árvore este verão, não terá mais nenhum Natal.

Precisamos todos de ganhar tino. A vida são dois dias e hoje já conta.

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