terça-feira, 26 de julho de 2016

Isto não foi só um jogo de futebol - III

Bandeia ao pescoço no Euro2012Por norma não sou supersticioso. Tenho algumas pequenas neuroses como tentar que seja o pé direito o primeiro a tocar no chão quando me levanto de manhã mas não tenho problemas com gatos pretos, passar por baixo de escadas ou entornar sal na mesa. Porém a coisa muda de figura no que diz respeito ao futebol porque nesse campo há coisas de que não abdico – um determinado par de boxers que (quase) sempre visto quando o Sporting joga, se a bola sai nossa nas peladinhas ou nos jogos eu tenho de a tocar antes do adversário e a minha velhinha bandeira de Portugal que está sempre ao pescoço em dia de jogo da Seleção. Há quatro anos tirei a bandeira do pescoço antes dos penáltis contra a Espanha e deu no que deu, nunca me perdoei e estou absolutamente convencido de que fomos eliminados do Euro2012 por me ter esquecido de pôr a bandeira onde devia, uma cruz que carrego comigo desde então. Neste Campeonato Europeu não facilitei e mal cheguei a Varsóvia, porque os dois primeiros jogos de Portugal vi-os em Faro no Jardim das Pirâmides na companhia da turma de outrora, vesti a minha camisola, atei a bandeira à nuca e repeti o ritual em cada jogo prometendo lavar a camisola apenas se perdêssemos.

Geralmente costumo ver os jogos sempre no mesmo lugar mas desta calhou não repetir nenhum local. Sozinho em casa contra a Hungria, com dois Nunos num bar à beira do rio contra a Cróacia, na casa de amigos com polacos e portugueses contra a Polónia, na casa dum português com casais amigos contra o País de Gales e a Final foi assistida em ecrã gigante entre compatriotas e respetivas namoradas num parque aberto com geleiras cheias de Super Bock. Estava preocupado porque não gostava de mudar de lugar entre jogos e porque nesse dia a minha Maria quis ver a partida e resolveu juntar-se à comitiva, um novo dado na equação que poderia desestabilizar a harmonia e a consequência dos resultados de Portugal. Envolto nesta tempestade de pensamentos, entre a possibilidade de ela poder trazer má sorte e a segurança que a minha bandeira me conferia mais a insuportável carga de nervos que uma Final implica, mamei com o John - inseparável compincha nestas batalhas - duas frescas quase de rambetão, acendi o primeiro dos 150 cigarros e ante os protestos da comadre que já não podia ver-me a andar de um lado para o outro, sentei-me no chão com o resto do pessoal a ver o jogo.

Os franceses ganhavam quase todas as segundas bolas e os duelos corpo-a-corpo, têm mais envergadura que os portugueses e os únicos que lhes podiam dar luta nesse aspeto eram Pepe, Fonte, William e Cristiano. Quando este ficou inutilizado perto do primeAdrien e Renatoiro quarto de hora de jogo, quando eu pensava que ia beber o resto da geleira num só gole, senti uma onda de calma olímpica a trespassar-me o corpo e em vez de prenunciar a derrota cantada em virtude de termos perdido o nosso melhor jogador experimentei uma profunda serenidade como que sentisse que a infelicidade do nosso capitão iria catapultar a Seleção para uma demonstração de união e solidariedade que culminaria na vitória que todos dedicariam a Cristiano Ronaldo.

Comecei a perceber que os franceses não estavam preparados para jogar contra um Portugal sem CR7 porque os jogadores das Quinas deram as mãos e desmultiplicavam-se em ações de sapa, guerrilheiros ibéricos que sabotavam as iniciativas gaulesas tentando bicar Lloris quando fosse possível e a partir dos 75 minutos constatei que eles estavam cansados, pensavam que iam limpar o jogo em hora e meia e estavam nos Campos Elíseos antes da meia-noite mas já se viam a ter de disputar um prolongamento contra aqueles pequenos e insolentes sacaninhas de vermelho. Fernando Santos põe Eder em campo e estranhamente concordo com a substituição, elogio a audácia, 'O pino vai segurar a bola e esperar pelos médios, os franciús estão rebentados!'. Os meus amigos aplaudem a jogada porque o Ricardo, camarada carioca dos meus primeiros dias de Varsóvia e que assistia ao jogo conosco, tem apelido idêntico – Éder. Dizem que ele vai resolver o jogo, eu rio para dentro e penso 'Era lindo, mas tal coisa significava o fim do futebol!'. Os cigarros desapareciam, a cerveja também, as unhas começaram também a sofrer consequências, a noite chegou e trouxe com ela o prolongamento, Patrício salva mais uma, e outra, o Gignac no poste!!, eu agarro o John pelos colarinhos que cospe a cerveja e grito-lhe a velha máxima que 'se esta não entrou então não entra nenhuma, punheta!' e vou rezando que 'quem não mata, morre'. Cresce a crença que podemos realmente ganhar o jogo, que podemos fechar o bico ao galo e protagonizar um St.Denisazo. Raphael à trave! O John urra que 'foda-se! Era esta!' Em silêncio concordo com ele e faço votos para que este golo não venha a fazer-nos falta. Pouco depois Eder recebe de João Moutinho, enxota Koscielny, flete para o meio e de cabeça em baixo puxa a culatra direita e reencarna Eusébio contra a Coreia do Norte em 1966. Histeria no nosso acampamento! O John pula e abraça o Ricardo, o Éder, e todos os que lhe aparecem à frente, a moça encolhe-se com medo que eu lhe pregue alguma punhada distribuida pela emoção, todavia mantenho-me sentado a digerir o que está a acontecer, leio a frustração dos franceses na reação de Pogba, os gajos estão desorientados porque não esperavam que isto pudesse acontecer, puxo mais um cigarro e olho para o relógio, faltam 11 minutos. Isto pode mesmo acabar bem.

À entrada para os descontos levanto-me e fujo. Fugi para um lugar onde não havia ninguém e vi de esguelha o último minuto da Final. Percebi que íamos ser campeões europeus e eu não sabia como proceder. Ia acontecer o maior evento da nossa história contemporânea desde o 25 de abril, caramba! Nunca na vida imaginei que veria o meu país campeão de futebol e agora não estava preparado para o momento. Eram sempre os outros, nunca nós, mas agora era a nossa vez. Como se faz? Tinha receio, era a primeira vez e a primeira vez é sempre atabalhoada, ansiedade, inexperiência. Ronaldo de joelho entrapado salta no banco e empurra o nosso selecionador, empurra toda a equipa, empurra uma nação para o seu destino vitorioso, para o triunfo. O árbitro apita, somos campeões e eu desabo a chorar.

Não sei quanto tempo fiquei chorando ajoelhado na relva mas deve ter sido um bom bocado porque senti uma mão nas costas e a voz do Ricardo, esse Éder, dizendo.

- Cara, parabéns! Mas levanta daí porque você tem de me agradecer o gol e o segurança está olhando para você faz cinco minutos.

Levantei-me chorando e chorando abracei aquele meu Éder, chorando telefonei à minha mãe, chorando recordei-lhe o tio João e o avô Luís que com certeza estavam também a limpar os olhos e a brindar com tinto do Poceirão, chorando se aproximou o John para um abraço e palavras embargadas, chorando gritámos 'Campeões!'

Foi a maior alegria da minha vida juntamente com o título de 2000.

A miúda afinal não trouxe azar, a bandeira cumpriu a sua função e Portugal cumpriu-se como Nação.

Portugal Campeão da Europa

PS – A maior diferença entre ver os jogos da Seleção em Portugal e no estrangeiro é que fora de Portugal não importa se é o Adrien que joga ou o Renato Sanches. É Portugal quem joga. Eu prefiro assim.

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