Consegui arrastar os jagunços para fora daquela cena de tragicomédia às 2:00, já me doía o braço dos subanos que o ucraniano me dava e tinha os ouvidos dormentes das perguntas da menina hiperativa de Lviv e ainda tinha umas centenas de quilómetros pela frente. Não estava cansado, estranhamente, sentia-me desperto e capaz de levar o carro mas confessei ao Dani, o outro condutor, que não me importava se parássemos numa bomba de gasolina para tomarmos um estimulante. Assim fizemos, já tínhamos localizado uma estação da Shell à entrada da cidade (porque a UkrNafta não inspirava muita confiança), ponto onde fomos abastecer carros e neurónios. O Dani grita: "Olha só para o preço do diesel!"
O gasóleo estava a €0.99 por litro, quase cinco vezes menos que em Portugal, quatro vezes menos que em Varsóvia (na Polónia os preços dos combustíveis não são cartelizados como em Portugal dando-se o caso de serem mais baixos em zonas onde o poder de compra dos polacos é mais reduzido, por exemplo, o preço da gasolina é mais alto em Varsóvia do que noutras cidades do país) e por isso decidimos atestar. Quando acabo a operação fixo o número da bomba, a importância e entro à procura do Red Bull da ordem, a estrica adicional para suportar melhor a viagem. Vejo latas de meio litro, dose cavalar, "nesta terra é tudo à bruta" pensei, mas ainda bem. Vou pagar, o funcionário pede-me 400 coroas das deles, eu vi que só tinha posto 250. Já estava a barraca armada.
O homem diz algo que eu não percebi, eu respondo "Ja, Mercedes" e repito a quantia em polaco. Ele diz que niet, niet e chama a colega que por sua vez abandona o cliente que estava a atender deixando-o em pé de guerra. Mais palavras em decibéis elevados e enervados, a mensagem sem passar e a mulher resolve assumir as rédeas da situação, o colega refugia-se atrás do balcão sacudindo a cabeça, faz-me lembrar o empregado do restaurante, a mulher pega em dois talões e aponta para eles e para as bombas, ralha em ucraniano apontando insistentemente para os talões e para as bombas e pergunta "rozumi?" Aí desorientei e expliquei tudo em polaco tim-tim-por-tim-tim e pareceu-me que estávamos a chegar a algum entendimento quando se ouve uma voz muito baixa, como se pronunciada debaixo de água "Um momento...". Era o segurança, falava português.
Um ucraniano em Lviv que fale português, isso é menos natural que o preto de cabeleira loura ou o branco de carapinha mas caiu do céu. Num português ferrugento mas bendito ele explicou que o rapaz tinha cobrado a bomba do Dani a mim e que o Dani tinha pago a minha conta, a solução era fácil, cada um pagava a gasosa do outro e acertávamos as contas um com o outro mais tarde. O Pimpão não perdeu hipótese de meter conversa com o senhor, perguntou-lhe tudo e ele lá foi respondendo que tinha trabalhado em Lisboa e Tomar, que tinha sido muito bem recebido pelos portugueses e que por isso torcia por Portugal no Europeu. Era um facto, os ucranianos confessaram-nos a sua predileção por Portugal muito em parte devido à hospitalidade com que recebemos os seus compatriotas durante a sua diáspora. Foi uma conversa bem disposta, alegre e necessária para arejar o ambiente, depois dos problemas solucionados ele conclui com uma expressão que eu já tinha ouvido na Polónia: "A cabeça trabalha", o Dani completa: "Mas não é sempre" Seguimos viagem.
Sair de Lviv foi um alívio para o automóvel, recuperámos a calma nas suspensões, calou-se a chiadeira e calaram-se os munines também, cansados da aventura, dos cânticos, da pressa das coisas. À noite aquelas aldeias onde meninos e velhotes nos saudavam e vitoriavam parecem desertas, de dentro das casas não se vê um fio de luz, das chaminés não sai um risquinho de fumo, nada indicia que as casas tenham gente e só se vê pernadas de árvores, sebes mal podadas, sinais escritos em cirílico, uma paisagem sinistra que só consegue melhorar quando imagino o mesmo lugar no inverno, o anoitecer prematuro, o frio insuportável, a aspereza das pessoas e da gastronomia rural eslava. As mesmas terras passam por nós, os mesmos nomes estranhos, as mesmas placas ferrugentas e estragadas que exibem as marcas de um passado negligente e austero, como se tivesse sido teletransportado 20 anos atrás no tempo, os Lada agora descansando numa garagem feita de ramos de carvalho, as casas sem reboco e por fim as luzes do posto fronteiriço, a cancela da liberdade, a passagem para a civilização, o escape para o éden, a fuga atrasada por mais uma fila, mais um controle, mais uma série de burocracias, uma boa meia hora em plena madrugada ucraniana à espera do visto nos passaportes.
Fuma-se para matar o tempo, todos menos o Giga e o Rui. Cansados, os munines rendem-se ao aparelho das formalidades. Já não estamos habituados a isto, desde a ponte sobre o Guadiana, e temos de levar a coisa na desportiva. Olho para trás e vejo um raio de sol a levantar-se sobre a planície ucraniana, sobre a terra que tanto me preencheu o imaginário da adolescência. Onde eu estive, aquela terra onde conduzi era União Soviética há pouco mais de 20 anos. Era a terra de Dasaev, de Gorbachev, de Kasparov, nomes da minha infância que habitavam paragens tão longínquas que me pareciam irreais, que só existiam na televisão. Os soviéticos, os terríveis, os malvados, os déspotas. Caramba!, eu estive lá, na terra que já foi deles, na ex-URSS.
Os guardas mandam avançar, eu julgo que ouço o marchar de botas militares na minha direção e por um segundo vejo o escudo da foice, do martelo e da espiga por cima do corredor automóvel em vez do tryzub – o tridente amarelo em fundo azul. Impressão minha.
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