quarta-feira, 25 de junho de 2008

Postais da Polónia - 5

Quem visita Varsóvia é bom que não tenha expectativas exageradas em relação às coisas típicas da cidade. Se o visitante de Paris pode trazer uma baguette para casa ou perceber a diferença entre um Piero de la Francesca e um Guardi depois de conhecer Veneza, também tem a possibilidade de especializar-se em tapas em Sevilha ou licenciar-se em salsichas em Munique. Em Varsóvia não se passa nada semelhante porque a capital da Polónia é uma cidade indefinida, sem identidade. A que tinha foi destruída por Hitler e a que sobrou foi aniquilada por Estaline. Guerras sucessivas e regimes loucos deram cabo da imagem de Varsóvia e dão corpo ao ditado eslavo que reza "o que realmente és, ninguém sabe". De facto, ninguém sabe o que é Varsóvia porque, de facto, ninguém é de Varsóvia.

Passeando pelas suas ruas percebe-se imediatamente que a cidade não tem "a Baixa". Teoricamente será na zona do Palácio mas nenhum varsoviano reconhecerá aquele monumento como simbólico do centro da cidade. A Cidade Velha e o respectivo Mercado não têm expressão pois o conceito de "Cidade Velha" é algo ambíguo na medida em que, depois de destruída pela II Grande Guerra, essa zona começou a ser reconstruída há apenas 60 anos. Os restaurantes são vulgares e não há nenhuma atracção que valha a pena visitar. Os varsovianos* também não se ralam muito com a inexistência do "centro" de Varsóvia porquanto cada bairro onde moram ou trabalham poderá ser considerado o "centro" nas suas opiniões: Para os jovens que vêm ganhar dinheiro para a Capital, o centro poderá ser Kabaty ou Żoliborz; para a enorme comunidade vietnamita o centro é definitivamente o pequeno bairro de Gocław, na margem direita do Wisła; para mim é entre a Rotunda e a Chmielna (a única rua pedonal de Varsóvia) se bem que more em Mokotów.

Reparando nos edifícios constata-se o dilema em que os arquitectos do pós-guerra se encontraram para tentar definir a traça polaca ao reconstruir a sua Capital. Os monumentais edifícios de linhas realistas dos soviéticos contrasta com arranha-céus de cunho americano. Prédios decadentes aninham tabacarias escondidas enquanto no outro lado do passeio labora uma popular escola de línguas. Os Porsches, Audis, Mercedes, BMWs aceleram selvaticamente em ruas esburacadas e engarrafadas, a estrutura da cidade não acompanhou o súbito progresso e asfixia em trânsito constantemente por falta de desenvolvimento da sua rede viária. As mulheres saem impecavelmente vestidas e competem no metropolitano pelo título de "mais vistosa", o que é um regalo para este maravilhado escriba.

A arte é pesada, os monumentos são todos relativos a vítimas das guerras, desaparecidos, mártires. Varsóvia é a cidade de todos os mortos, fantasmas, soldados desconhecidos. Os judeus, o "ghetto", o sacrifício é recordado a cada esquina.

É uma cidade que esmaga pelos contrastes e pelo cru realismo da sua função: Varsóvia é para as pessoas trabalharem. Lentamente surge um movimento cultural que procura imitar Berlim através da realização de concertos rock (brevemente vêm cá o Seal, Lou Reed e Santana) e as múltiplas salas de teatro patrocinadas pelos socialistas têm sempre em cartaz boas peças para o público, peças a que procurarei assistir mesmo que não domine o idioma na perfeição (se é que alguma vez o farei).

A encruzilhada em que Varsóvia se encontra pode ser difícil de suportar para o menos avisado, o ritmo é elevado e a exigência é constante. O luxo a par da miséria humana, o fausto vizinho da pobreza, o brilho estival substituto da melancolia do Inverno, os parques intensamente verdes a picotar o cinzento dos prédios decrépitos. Varsóvia é hard-core, só falta mesmo uma prainha para ser ideal.

Recomendo visitá-la para quem quiser sentir-se vivo pelo menos uma vez na vida.


* Escrevi varsovianos em itálico porque o conceito de "natural de Varsóvia" é muito vago. Ninguém nasceu e vive(u) em Varsóvia há mais de 60 anos, quando muito haverá uma geração de pessoas filhas de polacos que entretanto estabeleceram-se na Capital. A cidade tem 2.000.000 pessoas, apenas 10% nasceram cá.

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