São quatro da tarde, tenho uma hora para matar até à próxima aula e sento-me nas traseiras da Galeria Centrum para lanchar. Terça-feira é um dia terrível para mim porque começa às 7:00 e termina depois das 20:30 sem pausa para almoçar porque as deslocações são longas e demoram muito tempo. Passei por um Carrefour, comprei folhados de salsicha e uma minipizza, um pacote de litro de leite do dia, vi uma polaquinha bonita num banco e sentei-me ao lado dela a reparar no mundo.
Reparo nas meninas adolescentes com meias de pele de leopardo que fumam ruidosamente e nos skaters que estão com elas, exibem as suas manobras como um ritual de corte que me faz lembrar o arrulho dos pombos. Por entre eles passam outros adolescentes montados em BMX rebaixadas, bonés e calças rasgados e All-Stars fluorescentes. As meninas abrem passagem, sentam-se nos bancos, apontam, comentam e desmancham-se nas gargalhadas que os seus piercings amplificam enquanto sacodem as suas madeixas roxas ou cor de laranja.
Começo a ouvir o som dum rebanho a aproximar-se de mim, chocalhos que soam compassadamente por trás das coluna de pessoas que aparece de dentro do centro comercial. Uma rapariga de cabelos cor de gema passa-me uma razia na sua bicicleta, quase que babo o leite e cuspo o folhado. Ao meu lado senta-se um homem de meia-idade desdentado e de braços tatuados, abre a sua velha mochila e retira um panado qualquer que começa a trincar entre meia dúzia de palavrões grunhidos numa voz enegrecida pela nicotina. Os chocalhos estão mais próximos e passam três espécies de skinheads polacos de botas da tropa e calças militares. São magros como um etíope, falam alto mas são uns tísicos! Rio-me deles ao imaginá-los à tacada com os skins tugas no Largo Camões no 10 de Junho e pensei "moss, a Juve Leo varria-vos enquanto o diabo esfrega um olho!" Eles olham para mim, eu desvio para as BMX e dou mais uma golada no leite para evitar comentários e eles afastam-se provavelmente pensando que eu sou um boiola copo-de-leite qualquer. Melhor assim.
O rebanho aparece cantando e rindo, são membros do Hare Krishna e passam pelos skaters e pelas pitas acenando-lhes, batendo nos seus tambores e chocalhando as suas campainhas entre uma ladainha simpática mas incompreensível. Eu ataco o segundo folhado de salsicha com medo de que eles venham fazer a sua roda ritual perto de mim, hoje não tenho pachorra para movimentos pacifistas e para gente alegre by default. Tive sorte, a comitiva dos budistas cresceu porque as pitas e os putos dos skates aderiram à festa a cantar e pular sarcasticamente mas plantaram-se ao lado do polaco tatuado e sem dentes que espalha "kurwas" na atmosfera à medida que massaja o seu panado com as gengivas e encara aquele grupo de pessoas estranhamente contentes. 3 punks de muito mau aspeto cravam tabaco à miúda que está sentada ao pé de mim, sinto-me entre uma panela e uma frigideira, dum lado chove e do outro faz vento. A qualquer momento os loucos dos chocalhos viram-se para mim, ou o polaco desdentado, ou os punks do tabaco, os putos das BMX vêm fazer cavalinhos para cima de mim, as pitas hão-de grasnar-me aos ouvidos, todos me vão notar menos a miúda gira. É uma questão de tempo até repararem em mim, moicano latino, olho castanho, um pacote de leite, ténis Le Coq, saco do portátil a tiracolo, anel no indicador direito, calça rasgada no joelho, um alvo fácil. Agora é tarde demais e não posso bater em retirada senão caem-me em cima que nem cães a um osso, por isso vou comendo mansamente a minipizza procurando ruminar o mais silencioso possível e não mexendo no leite.
O calor avaga e sopra a brisa avisadora, vem lá chuva. O céu em Włochy não augura nada de bom e não dou mais que 5 minutos para que pingue. Arroto, o estômago já está cheio mas ainda há meia minipizza para dar cabo e o polaco fita-me candidatando-se aos restos como se me lesse os pensamentos. Começa a chover e o Hare Krishna debanda abanando os seus guizos rua abaixo indiferentes à precipitação. As pitas acabam com o cacarejar estridente e fogem para os Pizza Hut e KFC vizinhos, os punks sentam-se noutros bancos mais distantes fumando e bebendo de empreitada, o velho tatuado lambe os dedos e o plástico onde o panado estava envolvido e prepara a sua trouxa para abalar, a mocinha ao meu lado levanta-se e vai a caminho do namorado que entretanto chegou.
Eu? Eu aceito a chuva com um sorriso despreocupado e desfruto do meu querido leite. Lembro-me do Fábio, do Artur e do Zé Gato. O mundo mudou muito, meus velhos, mas eu ainda sou eu e estou no que já vai sendo meu.
3 comentários:
Eu sinceramente acho que este teu texto tem imenso potencial para se tornar um scrip a um anúncio da Mimosa para incentivar o consumo de leite :).
Ps: Confesso que estava à espera de um final do género teres batido um papo com a miúda gira porque ela te tinha dito que achava muito sexy um moicano latino agarrado a um pacote de leite! Para a próxima terás mais sorte, verás.
adoro leite, é a minha bebida preferida e sou capaz de beber leite em qualquer circunstância. até às refeições. achas que este texto em conjunto com uma cena tipo kim basinger e mickey rourke dariam resultado? ;)
ps - eu até nem estava mt interessado na miúda, tava era com uma fome de cão!
Epah, eu não tou a perceber bem o que faria um grupo de Hare Krishna ou de bacanos de BMX no meio de uma cena tórrida envolvendo a senhora (sim, porque agora ela já é uma senhora) Kim Basinger.
Há nos EUA uma campanha publicitária chamada "got milk". Era mais nisso que estava a pensar :). Não em louras deslumbrantes a levar um banhinho de Laciate!!!
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