Há sempre algo a reter em cada viagem que fazemos, os lugares e pessoas que conhecemos, os sabores e cheiros que provamos, as sensações que experimentamos. Há sempre uma estória que se retém, um episódio que permanece na memória, um momento que fica escrito nos anais mesmo que seja repetição de coisas já vistas e feitas. Viajar é um ato de crescimento, de aprendizagem e de abertura para o mundo e a viagem que agora faço (Faro – Eindhoven – Varsóvia) foi mais uma página boa que escrevi no diário de bordo.
Primeiro pela magnífica festa de fim de ano passada na companhia de excelentes amizades antigas e recentes, pessoas com as quais já mantinha laços de relacionamento muito estreitos que me apresentaram a grandes companheiros de borga, homens e mulheres interessantes que proporcionaram a borga ideal no ambiente perfeito para tal. A Ilha do Farol e a casota que o Baranito administra parecem talhadas propositadamente para o efeito, na esquina sudoeste da ilha entre o oceano e a Ria com panorâmica privilegiada para a costa algarvia, Faro e Olhão. O plantel que se juntou foi escolhido a dedo, cozinheiros de mãos largas que não deram descanso às brasas do fogareiro desde a noite de dia 30, alquimistas da sangria e da gelatina de vodca que ajudaram a desenjoar das mais de cem minis que se consumiram em duas noites, fadas das sobremesas, dos folares, dos brigadeiros, dos ananases com leite condensado e das tartes de amêndoa que não paravam de vir da cozinha para a mesa. A facilidade com que se riu, com que se criou camaradagem com quem vem de fora, com que se partilharam anedotas e episódios divertidos, fados sentidos e karaoke etílico, tudo o que é típico nas passagens de ano do Farol repetiu-se este ano com personagens novos mas com a mesma mística que os novos convidados encarnaram com perfeição para que a Ewa testemunhasse como se vive o fim do ano à beira-Ria.
O fim da quadra foi em tons de contentamento, de barriga cheia e de esperanças para o novo ano. Uma escala de oito horas em Eindhoven nos Países Baixos permitiu dar um pulo até ao centro desta cidade e conhecer um pouco da região, como se vive e como se trabalha. Descobri uma cidade atraente sem manifestações de modernidade agressiva como edíficios de linhas impressionantes ou arranha-céus megalómanos. Antes apareci num largo simpático rodeado de calmos restaurantes e boutiques famosas mas pequenas na qual se ergue uma estátua do sr. Frits Philips, emérito cidadão de Eindhoven e um dos presidentes da empresa com o mesmo nome que dá brilho à cidade e ilumina-a no mundo. Num desses restaurantes comi um dos melhores hambúrgueres de que me lembro e fiquei admirado com a funcionalidade dum centro urbano que tem a principal estação ferroviária, o núcleo comercial de ruas pedonais e o estádio da equipa local (que até já foi campeã da Europa) num raio de cinco minutos a pé. Mais surpresa causou a existência de ciclovias por toda a cidade (e haver ciclistas a montar bicicletas com 2ºC), uma faixa central em cada avenida destinada exclusivamente para os autocarros para que não hajam engarrafamentos e o arranjo e limpeza dos ajardinados arredores onde nas paragens de autocarro até há parques para aparcar bicicletas.Eindhoven pôs-me a pensar numa coisa que já tinha pensado há uns tempos, se a capacidade de adaptação que revelei em Varsóvia se aplica noutros locais, se eu conseguiria obter os mesmos resultados que consegui em Varsóvia noutra cidade, o que eu poderia dar a Eindhoven e o que a cidade teria para me dar. Passear na Markt Straat foi como visualizar-me naquele contexto das bicicletas na neve, no canal a passar nas traseiras do Philips Stadion, nas casinhas escuras de Veldhoven, num aeroporto internacional a 10 minutos de casa com low-costs a voarem para todos os cantos da Europa a preços camaradas, aprender mais uma gramática diabólica e cânticos de futebol estrangeiros, tirar passes de transporte público, memorizar números de autocarro e marcar um ou dois supermercados perto de casa para as compras da semana.
O prazer de voltar a Faro é imenso, infindável e já aqui o referi muitas vezes, porém o frenesim que se instala em mim sempre que visito uma cidade nova nem que seja por uma tarde como foi o caso ora referido de Eindhoven é difícil de explicar. Às vezes gostaria de não ter ficado tanto tempo estagnado em Faro e de ter saído mais cedo, ter descoberto mais coisas, ter mais carimbos no passaporte e mais experiência de vida. Mas o devaneio dura pouco e escrevo num céu algures entre a Alemanha e a Polónia porque D. Varsóvia espera-me, umas vezes uma simpática e trémula velhinha de cabelos brancos curvada pelo peso da sua história arrasadora, outras uma amazona implacável e autoritária que não se deixa comover com as limitações das pessoas e que as suga até às últimas das suas capacidades e energias, outras ainda irresistivelmente sensual, Circe eslava que apaixona e enfeitiça o comum dos mortais até o deixar inapelavelmente ajoelhado aos seus pés.
Como amanhã, a partir das 6:30, ela ter-me-á uma vez mais como um seu servo, patroa déspota e sem coração que me exige tudo durante a semana mas que se escarcha em prazeres para mim no fim de semana. Aqui vou eu, Varsóvia, pronto para ti. Que tenhamos os dois um belo 2011! ps – Um abraço especial para o Panda cujas passagens de ano nunca mais serão as mesmas. Ânimo, amigo. Quem tem um pai que cultivou tanta amizade e tanto respeito não pode estar triste por ter partido mas orgulhoso pelo que ele fez enquanto vivo. Às vezes, nos dias piores, lembro-me dele, a voz rouca a puxar por mim enquanto alongávamos no fim dos treinos: “Vamos lá, Soviético! Mais um milímetro, mais um milímetro. Isto é o Farense, não é o Parragil” E eu lá me estico mais um milímetro e vou levando a água ao moinho.
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