sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Ayamonte

2007_03_29_es_an_Ayamonte Tenho visitas polacas a meu convite que vieram passar 10 dias a Faro, temos dado algumas voltas para que as meninas conheçam melhor a região que divulgo com tanto orgulho na Polónia. Ontem calhou ter uma abertura para dar um saltinho a Ayamonte e embarquei a Ewa e a Ania para poder dar a conhecer um pouco da realidade da vida à beira-Guadiana. Atravessar aquela ponte sempre me faz um pouco de confusão, ir a Espanha é como atravessar o espelho e entrar num ambiente que é muito parecido ao nosso mas com muitas pequenas diferenças que recordam que não estamos em casa. Ir a Espanha é também recordar a saga do bacalhau:

Há 30 anos atrás ainda o escudo dava bailes à peseta, os portugueses tinham maior poder de compra do que os espanhóis e atravessavam a fronteira de Vila Real de Sto. António para irem às compras à vila de Ayamonte onde havia comida, brinquedos e produtos de limpeza mais baratos do que em Portugal. A minha família demandava Espanha uma vez por mês para se fornecer de bacalhau, alimento essencial na gastronomia portuguesa e que naqueles tempos escasseava no nosso território. Acresce que a minha avó tinha uma pequena empresa de produtos alimentares, fazia rissóis, pastéis de bacalhau, empadas e outros salgadinhos com que abastecia Faro inteira – escolas, cafés, restaurantes e supermercados. A Renault 4L do avô Luís enchia-se de filhas, cunhadas e netos e atacava os 53km da rudimentar EN 125 em ambiente de grande folia, íamos à Espanha!

Eu curtia ir à Espanha porque isso era sempre sinónimo de diversão. As viagens eram sempre grandes pagodes, a minha avó avisava o meu avô para não atropelar um cão que estava deitado a 10 metros da estrada, o velhote rosnava-lhe para que ela o deixásse conduzir descansado, a minha tia tentava cortar um pão caseiro no banco de trás para fazer o farnel e o puto lourinho que eu era lavava-se a rir com as tropelias da família e antevia o brinquedo que traria para Faro – uma ocasião fiz pressão para que a minha tia comprásse um estojo de química. Apesar da veemente oposição da minha mãe acabei por levar o estojo para casa e logo na primeira experiência puxei fogo à alcatifa do quarto.

Os quintais de bacalhau que eram trazidos todos os meses só tinham entrada em Portugal devido à incrível capacidade de persuasão que os meus familiares sempre tiveram, as minhas tia e avó conseguiram800px-Puente_sobre_el_Guadiana cativar os agentes da Alfândega e da Guarda Fiscal à pala de tanta conversa exageradamente simpática para passarem apenas metade dos sacos no balcão da repartição e conseguindo que o bacalhau passásse à ravessa dentro do carro onde o meu avô esperava impaciente, sempre protestando com o “dar-à-língua” desnecessário que as mulheres da minha família protagonizavam com os agentes alfandegários. O bate-boca não era desnecessário de forma alguma pois crianças menores de idade só podiam transpor a fronteira mediante uma autorização escrita dos pais e eu ia sempre com uma mantinha por cima para disfarçar, apesar de toda a gente em Vila Real saber que eu ia lá. Até com 12 anos eu conseguia aceder ao ferry-boat com bilhete de criança (8 anos), aqueles pequenos favores que se praticavam sem se ter a noção de que se estava a violar a lei nem com consciência do sinónimo “corrupção”.

ferrysmall Voltar a Ayamonte e beber uma caña e comer um prato de choco frito é recordar esses tempos e compará-los com os dias de hoje. Já não há tantas lojas de brinquedos, a praça está modernizada, o estádio foi substituído por apartamentos de primeira classe, os ferrys foram trocados pela ponte e são apenas atração turística. Passeei pelas ruas onde haviam as tais lojas, revi os supermercados onde a minha mãe comprava sabonetes Heno de Pravia e espreitava as rebajas e a mercearia do sr. Virgílio, português radicado em Ayamonte, de onde proviam as pajelas de chocolates e bacalhau que levávamos para Faro, lembrei as filas de carros no porto porque toda a gente queria seguir no último barco da noite, as sandes de paio e batidos Cola Cao, os bilhetes rasgados pelo Payño da bóina preta a flutuar no Guadiana.

Ah, os tempos em que éramos felizes e não sabíamos…

4 comentários:

Ryan disse...

Caro compatriota... estou completamente de acordo com a última frase da sua escrita de hoje. Só damos valor a certas coisas quando já passaram. Enfim é a nossa condição como seres humanos. Tenha um bom tempo por terras lusas com as belas polacas.

Zé de Fare disse...

Agora só faltam umas fotos em Sagres que o sítio mais importante da história deste país mas ao mesmo tempo o menos preservado...

Ricardo disse...

História deliciosa. Trouxe-me recordações de infância muito queridas com a diferença da fronteira ser na Galiza e o carro ser um Fiat 128 Sport.

Lembras-te das gasosas La Casera com aquelas rolhas em cerâmica e arame?

ab

PM Misha disse...

Ricardo,
La Casera é muito old-school q:D E não te lembras da excitação que era beber Fanta que na altura ainda não existia em Portugal?

Zé,
Pode ser que ainda se arranje tempo para isso, xa lá ver..

Ryan,
Obrigado, amigo. A companhia torna as férias mais agradáveis q;)