segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma polaca, um algarvio e um guisado

Jardim do Padre Popiełuszko A vida de um emigrante é feita de uma constante adaptação ao ambiente que o rodeia, há aspetos de diversos quadrantes que obrigam a essa adaptação e que passam pela adaptação da visão ao planeamento urbanístico da cidade onde se vive, por exemplo, mudar o registo do passeio que costumava ser artisticamente configurado em pedra de calçada portuguesa para uma monocromática e impessoal sucessão de bloco de cimento. Adaptamos a postura que não pode ser tão exuberante porque os nativos do país adotivo são mais reservados e reprovam manifestações exageradas de afeto, falamos mais baixo e gesticulamos menos, às vezes os olhos falam mais do que a boca. Essa adaptação passa também pelos outros sentidos, há odores que nos faltam e que foram entretanto substituídos por outros, há sons que nos acompanham no dia-a-dia da nova terra que nunca fizeram parte da nossa vida, o elétrico a travar, o sinal sonoro de que a porta do vagão do metropolitano está a fechar, a linguagem que as pessoas usam para comunicar, a chave que produz um som diferente ao entrar na fechadura. A textura da água que corre da torneira é diferente, o ar que se respira tem outra espessura, as coisas que compramos no supermercado não são exatamente as mesmas, o detergente da roupa lava de maneira distinta, o próprio organismo reconhece as desigualdades e vai-se formatando após a estranheza inicial. Esta adaptação é contínua e dura desde o primeiro instante de permanência na nova terra até que se a abandone para sempre, nunca seremos iguais aos que cá nasceram por muito tempo que passemos na terra deles. Podemos ser até passar a ser um deles mas nunca seremos iguais a eles, por muito que eu jogue futebol com polacos vou sempre preferir o passe curto e a progressão de pé para pé do que esticar na frente e ver os dois laterais subirem ao mesmo tempo, por muito que eu me sente no inverno em bares com polacos vou sempre pedir uma imperial em vez duma cerveja quente com cravinho. Falarei polaco mas serei português até ao fim, terei necessidades portuguesas, reações portuguesas e gostos portugueses. Principalmente, gostos algarvios.

Não é fácil satisfazer o gosto algarvio numa paragem tão afastada do Algarve como é a Polónia. É difícil matar o desejo dumas conquilhas com molho de manteiga e coentros, dum passeio junto à Doca de Faro, dum ajuntamento de malta para petiscar antes de ver o Sporting, dum tiro de medronho após um lauto repasto de javali assado com batatas e griséus num forno da serra do Caldeirão. Muito menos fácil é encontrar lugares que sejam tão especiais ao ponto de nos fazerem recordar tempos únicos, idades singulares, momentos excecionais. Encontrei um lugar assim.

A Elwira é uma jovem aprendente de Língua Portuguesa, gosta de ir ao meu país para surfar, tem um grupo de amigos com o qual gosta de curtir e apanhar sol e esta é a sua motivação para aprender Português. Além de ser extraordinariamente bonita - é uma Cameron Diaz de cabelo moreno, 'kitada' com a sensualidade eslava que escorre de cada mulher polaca e uma voz rouca capaz de fazer o Marquês de Sade soar como Shakespeare- é uma rapariga de uma simplicidade surpreendente, muito boa onda, sempre tranquila e com um talento especial para encontrar lugares para as nossas aulas. Lugares que combinam com ela, tranquilos, simples mas incrivelmente sexys. Lugares que dão para estudar, para conversar, para comer... e que coisas se podem comer!

Num destes dias a conversa estendeu-se no período pós-aula, sentados em cima dos pés falámos de coisas importantes e ninharias, ela a dizer-me dum curso que ia fazer à Florida e eu a contar-lhe da minha próxima viagem a Faro, decidimos almoçar porque já passava das duas da tarde e estávamos cheios de fome. A ementa apresentava uma tal carne guisada com molho e puré de batata como acompanhamento, decorada com folhinhas de salsa e que resultou na minha escolha. Um prato simples que se tornou na descoberta do ano. A primeira garfada pôs-me a ver estrelas e transportou-me trinta e tal anos atrás no tempo, para o quintal de pedra da casa da minha avó situada na Rua do Alportel, para as jogatanas de futebol na Escola do Carmo, para a apanha de lingueirão com o meu tio no parchal da Ria, para as bancadas de cimento do Estádio de S. Luís, coisas que nenhum cliente ou funcionário do Zagadka desconfia que tenham existido. Uma invasão de sensações familiares a cada dentada na carne, uma explosão de memórias sempre que o molho inundava o palato. Raios e coriscos!, que aquilo que eu estava a comer era a carne de vaca à jardineira que a minha mãe faz.
 
No top 3 dos meus pratos preferidos, a posição primeira está perpetuamente ocupada pelo feijão guisado do meu avô Luís, uma rica sopa espessa que segurava uma colher na vertical no meio do prato, feita em tachos que eram raspados com fatias de pão caseiro e lambidos por mim no final da refeição. A segunda posição pertence a um pudim feito aquando duma consoada pela saudosa Dona Graça e que me fez rebentar lágrimas nos olhos de satisfação quando a língua o esmagou contra o céu da boca. Na terceira posição está este guisado polaco que, ao fechar os meus olhos, me fez sentar 30 anos depois à mesa da minha mãe, tirar o guardanapo das bolsinhas de renda que ela fazia e regalar-me com uma jardineira das dela.
 
A segunda garfada fez-me levantar da cadeira, dirigir-me à Elwira que ao meu lado ouvia divertida os meus grunhidos de prazer e pregar-lhe um beijo na testa (a minha vontade era outra), grato por me ter concebido aquele inexprimível deleite. Ao lado, no Jardim do Padre Popiełuszko, velhinhos sentavam-se nos bancos a gozar o sol primaveril. A Elwira olhava para mim com aqueles seus olhos de pantera e ria-se de mim, um algarvio entregue a um guisado como se mais nada no planeta importasse. Há coisas que nos fazem sentir assim – muito bem.

1 comentário:

Pedro Lopes disse...

Sempre um prazer ler estas "crónicas"!