A alvorada tinha um cheiro diferente, o ar era mais intenso, parecia que custava a respirar. E-mails para responder do trabalho em Varsóvia e dos trabalhos de Faro, contabilistas e bancos na ementa da manhã, as chatices pelas quais passa qualquer português que tenha património por mais pequeno que seja. Assuntos familiares para resolver, decisões para se tomar, um encontro de negócios realizado na mesa de um café da Praia de Faro – negócios à algarvia – e o telefonema nervoso do Giga a apressar processos: – Vá, pá, para não chegarmos em cima da hora – disse ele. Era a palavra-chave, o carro para Alvalade ia abalar.
Parou-se na área de serviço de Almodôvar para as primeiras cervejas da viagem, o condutor a seco como manda a sapatilha mas no banco de trás não havia dessas restrições e rolavam as fresquinhas, discutia-se André Martins ou Elias, lembravam-se deslocações passadas e projetavam-se as futuras com a viagem a Bilbao a centrar as atenções. De carro ou de avião? Ainda não se sabe mas isso não é relevante, o que interessa é que vamos, reserva-se o hotel e depois logo vemos como vamos lá ter. O Toni entretanto telefonou, falou duma jogada qualquer que se está a preparar para termos camarote para vermos o Sporting – Ath. Bilbao, coisa de luxo, e disse que não podia ir ao jogo por causa do trabalho. Tá bem, da vida de cada um sabe cada qual mas pude sentir que ele estava em sangue para viajar naquele carro. Paciência, fica para a próxima. O Cristóvão também falou conosco ao telefone, esse tem fé até em jogos que estão mais perdidos que a Barca do Inferno, prognostica vitórias épicas, exibições monumentais, - Vais ver que espetamos três e mandamos passar o campo – mas lamentou não poder vir por estar retido no Algarve em trabalho. Pena, o gajo é um companheirão nestas aventuras. O Ruben, outro doente, mais pessimisticamente ligou a dizer que não ia. – Epa, oito horas é muito cedo, não consigo ir. – Mas o jogo é às 20:15! – Ai é? Ah, então assim já posso ir – como se quinze minutos fosse uma diferença gigante. Mais portagens, uma absoluta e indescritível roubalheira, limites de velocidade milimetricamente cumpridos e chegou-se a Lisboa bem mais rápido do que se julgava, sem trânsito na Segunda Circular, as torres amarelas de Alvalade a espreitar entre os prédios até se revelar o templo leonino à descida para o Campo Grande, estacionando o carrinho no parque do estádio, seguro e sereno. Mais uma latinha de Super Bock para atamancar a ansieade, avaliou-se o estado do tempo para perceber se valia a pena levar casacos para o campo e meteu-se pernas na direção d’ O Difícil, restaurante habitual da minha maltinha em dias de jogo, para a refeição da bola: Uma bifana e uma imperial. O Ranheta, outro sportinguista do tempo das cadeiras de pau, juntou-se ao grupo. O Giga e a Ana pediam carnes, eu com zero de fome sentia o aproximar da hora e só me dava para engolir imperiais, lanchei cerveja, estava desejando entrar no estádio ainda que faltassem duas horas para o jogo. Reparámos numa escaramuça no exterior do restaurante, o folclore do costume com a Polícia de Intervenção a fazer duas detenções à nossa frente, corridas para a frente e para trás, cacetadas e povo a procurar entrar no restaurante como abrigo, nada de novo. Por fim fomos para o estádio com meia hora para o jogo começar a tempo de ver as coreografias na entrada das equipas no revado, momento de grande beleza que deixou de ser consagrado nas transmissões televisivas. Alvalade viveu uma noite de festa, mais de 45.000 sportinguistas a cantar do primeiro ao último minuto num apoio incondicional apropriado ao momento, o dérbi nacional. Cedo no jogo apareceu o penálti de Luisão sobre Van Wolfswinkel e o primeiro momento de ansiedade, a enormidade de tempo entre o apito do juíz, o chuto na bola e a consequência, segundos com a cara enfiada nas mãos, beijos no emblema, figas e rezas, apelos a intervenções sobrenaturais para o desfecho desejado, bola para um lado e guarda-redes para outro. Um cigarro para acalmar os nervos, sem eficácia porque o nervosismo aumenta com o passar do tempo. Estranho todo esse nervosismo porque o jogo estava controlado, as investidas dos rivais perfeitamente manietadas mas os anos que levo de sportinguismo ensinaram-me a acreditar nas vitórias só dois minutos depois do árbitro apitar para o final. Capel ao lado, Izmailov à figura, as oportunidades sucediam-se e eu a pensar que “ainda havemos de lamentar todo este desbarato”. Patrício não tocava na borracha, Polga – o meu ódio de estimação – limpava tudo, Insúa e João Pereira espetavam agulhas nos flancos adversários, Elias enchia o campo e secava o sangue a quem pisasse o seu quadrado, Matías jogava como se tivesse comprado um terceiro pulmão e o intervalo chegava para mais um cigarro de alegado sossego tal como se eu estivesse na minha sala em Varsóvia, uma fantasia porque o tabaco só dá é cabo da cabecinha a uma pessoa.Veio a segunda parte e mais do mesmo, a bola com os outros, sempre com os outros que felizmente não sabiam o que fazer com ela, não a queriam, a bola atrapalhava, empatava, não dava jeito tê-la e por isso alguém a passou para Van Wolfswinkel e diz “vá, faz golo” mas o holandês achou esmola a mais e desperdiçou. Mais um cigarro e as pulsações a latejar nas fontes, cãimbras nos gémeos, tendões rígidos, faltavam as pantufas para eu atirar às paredes e os sofás que eu pontapeio quando vejo bola em casa, o jogo era uma coisa mas eu via outra, enquanto Xandão & cia. enxotavam os tímidos ataques do adversário com tranquilidade eu imaginava Adamastores que tanto batiam até que furariam a linha defensiva do Sporting. Não foi isso que aconteceu, bem pelo contrário, foi o holandês perdulário que escorregou no momento do xeque-mate e o meu jogador, Marat Izmailov, que falhou o golo da Eurosport ao esmagar a redonda na quina de Artur. Patrício continuava com as luvas por estrear, quase que dava para jogar à carta com os apanha-bolas mas a tensão não diminuía e os cigarros eram engolidos a galope. Só relaxei quando o estádio começou a saltar, sentindo a certeza da vitória. Aí rodei a cabeça e percebi onde estava, entendi que aquela vitória não nos fugia, que havia demasiada energia positiva para o desfecho ser outro, que ali, naquele estádio e naquela bancada, tudo fazia sentido e tudo se realizava. Estávamos em Alvalade, como admitir outro resultado?
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