Não sei se na Polónia há matanças de porco como as de Portugal, aquelas em que parentes e vizinhos se juntam de manhã cedo, começam logo a despejar medronheiras e atacam a pocilga já muito prejudicados pelo maligno, tentando perseguir o suíno escorregadio que lhes foge entre os dedos. Às vezes as pernas cedem ao álcool e lá vai um chapanço na trampa, um inconveniente para o protagonista da façanha mas um pagode para os outros que dão assim uma folguinha ao bácoro antes da investida final que invariavelmente culmina com facada certeira na papada e a conversão do simpático animal em refeição dos guerreiros e convidados. As primeiras partes das matanças jamais foram do meu agrado, nunca quis ver o bicho ser morto e fui a muitas matanças na casa do meu amigo Nelson, caçador da serra do Malhão e especialista em pabulagem como todo o que se preze, onde tinha sempre um lugar à mesa dele, uma mesa farta de febras, enchidos, costeletas, fumados e outros quitutes do género. Este meu quase irmão sempre foi um boa-boca e eu um seu escudeiro, uma ocasião fomos à inauguração de um supermercado em Faro convidados pelo responsável do talho e o apuro da tarde saldou-se em 17 costeletas de porco grelhadas para cada um sendo que só parámos porque as pessoas queriam levantar a mesa. Uma alarvidade, dizem uns, uma tarde bem passada, diríamos nós.
Esta prosa toda a propósito duma cerimónia a que fui convidado (sem alternativa), o encontro anual da família da Ewa, um evento que reúne qualquer coisa como 60 pessoas à mesa. Um acontecimento de algum protocolo do qual fazem parte a assinatura da folha de presenças, a consulta do álbum de fotos dos encontros pretéritos com a consequente pesquisa de tias-avós que só se vêem uma vez por ano, a prova das pomadas caseiras que vão do vinho novo sempre muito generoso à mais rija aguardente de ameixa passando por licores de cereja e frutos silvestres cada qual mais doce e mais graduado que o outro. Um primo da Ewa serviu-me um niquinho de licor, só um sopro, eu não podia beber mais porque estava de serviço ao volante e a ramona aqui não facilita nesse tema, e como me soube a maravilhas logo o primo avisou do grau do xarope, 60% de emoção e o cálice imediatamente afastado para evitar conflitos institucionais. Havia também uma árvore genealógica que recua até ao séc. XIX e que tinha um espaço guardado para o tipo com o nome esquisito, o visitante do Ocidente, o primeiro sinal de globalização naquela floresta de genes eslavos. Agora que rubriquei a minha presença pode ser que figure na próxima edição dos cadernos. Entretanto nos fogareiros caíam salsichas e morcelas, nacos do cachaço e do lombo, pão caseiro e saladas de pepino para acompanhar, uma delícia de carnes, um pavor de verduras.
Momentos altos do certame, o desenterro da garrafa de vodca que tinha sido refundida no ano anterior e que tinha passado aquele tempo todo debaixo da terra, sob chuva, neves e vento, guardada por uma pedra ancestral. Essa pesada pedra foi retirada por dois ou três dos homens mais novos sob a supervisão atenta e interventiva dos anciãos, mais para a esquerda, força rapazes! Eu não participei porque ainda tenho apenas o estatuto de observador e limitei-me a dar apoio na logística, afastar ervas por exemplo. A caixa foi resgatada e o conteúdo recuperado, garrafa encetada e todos beberam da mesma aguardente, homens e mulheres, jovens e velhos, o mesmo espírito e a mesma filosofia. Um tio viu-me meio encavacado e perguntou-me se já tinha bebido estendendo-me o copo depois de ouvir a resposta. A vodca estava quase gelada, escorreu que parecia água, hei-de meter uma garrafa de medronho no frigorífico para ver se faz o mesmo efeito.
Ao cair do sol a família começou a desmobilizar, nós também levantamos ferro porque depois daquela tempestade de carne a única visão que nos dava gosto ter era a do nosso sofá aberto e assim se cumpriu mais uma etapa de integração aparentemente com bons resultados, os primos ficaram agradados por eu ter conversado (oh, um estrangeiro que fala polaco!), os parentes homens beberam comigo e a futura sogra chamou-me à parte para me dar um taparuére de banha caseira com torresmos. - Sei que a Ewa não gosta disto mas acho que tu gostas - disse ela quase em voz de conspiração como se estivesse a contrabandear o produto, Mas é verdade, gosto da banha e fiquei satisfeito por a senhora se ter dado ao trabalho de separar um pedacinho para mim. Sempre ouvi dizer que mais vale cair em graça do que ser engraçado.
1 comentário:
Além de professor de línguas etnógrafo ;)
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