Uma das boas coisas de ter nascido numa cidade pequena na romântica década de 70 é ter beneficiado da gastronomia à moda antiga sendo esta definição em abono dos costumes de outrora. Na minha casa sempre se prezou a comida de panela, tachos de densas sopas de grão com batata doce e frade, o feijão com massa ou com arroz generosamente temperado com carnes de vaca e de porco, talhadas de toucinho e tubos de chouriço de sangue e de carne, pratos de manter a colher na posição vertical. Como se este betume não fosse suficiente não faltavam bandejas de pão caseiro para engrossar ainda mais o caldo porque se não há pão não é refeição. Cresceu este vosso escrevedor entre tachos e travessas de calorias aos milheiros preparados por autênticos ases do fogão como a minha tia e a minha avó, não parece que tenha vindo mal ao mundo devido a esse costume pois velhos morreram os seus maridos, ambos bem entrados nos 80, e nunca tiveram doenças do foro digestivo, eu espero ter a mesma sorte apesar dos tiros que de vez em quando dou no estômago com a fast food com que às vezes o engano. O que importa reter é que os farináceos sempre estiveram bem representados à minha mesa: O feijão, o griséu, o grão-de-bico, o feijão-verde e infelizmente a fava.
A fava é um legume miserável, triste e azourado. Ninguém quer que lhe saia a fava no bolo-rei, ninguém gosta de “pagar as favas” nem de ser mandado à fava. Também ninguém aprecia um jogo de “favas contadas” e poucos são aqueles que esperam “até que venha a mulher da fava-rica”. Assim de repente não me lembro de nada relacionado com favas que tenha conotação agradável.É justamente a fava o tema deste artigo, o único legume da família pelo qual destilo ódio congénito a ponto de me dar ânsias só de me lembrar das pratadas de favas com chouriço e toucinho com que a minha mãe presenteava a família acreditando que era prato tido como guloseima mas que só me inspirava repúdio. O cheiro, corrijo, o fedor da cozedura só se comparava ao indescritível asco que me criava uma distraída dentada em isca de fígado, outro fel que não me entra nem à lei da bala. A tortura era maior porquanto a minha mãe nunca se lembrava de qual legume eu gostava, se de favas ou de griséus. Na dúvida, e como a fava rendia mais, vá de despejar favas ao lume para mal dos meus pecados. Pior ficou quando nasceu o meu irmão que tinha gostos inversos aos meus, ele amigo de favas que não de griséus. Aí a opa borrou de vez, eu nunca mais tive descanso e fui perseguido pelas ditas vagens como se fugisse à Inquisição. Até o meu querido avô, que de defeitos só tinha o de ser encarnado doente, tentou burlar-me impingindo puré de favas fantasiado de sopa de feijão mas o meu faro detetou a marosca e antes que comesse gato por lebre espetei com a malga no bueiro do esgoto e nunca mais naquela casa se cozinhou tal lavagem para mim. Desgraçadamente a minha mãe não aprendeu a lição.
Ora, neste pentágono à beira-Báltico para onde me mudei há quase quatro anos ocorre novo episódio das pancadas psicológicas dos polacos. Depois de terem sido varridos os vestígios da saga dos morangos, uma paranóia que no mês passado assolou o país de lés a lés e que meteu alguns amigos a comer três quilos de morangos por dia, ação justificada por “só haver morangos na Polónia durante o mês de junho e há que aproveitar”, decorre agora o período de consumo febril de favas e em cada esquina de Varsóvia encontramos automóveis de produtores (ou apenas vendedores) de fava que vendem o seu produto em sacos de quilo pela quantia de 7.00pln, qualquer coisa como €1.80. O arrepio que tal visão me cria só foi até agora batido pela vigorosa náusea que senti quando a Ewa puxou duma embalagem semelhante da mala dela e perguntou-me se eu estava interessado em mordiscar uma favinha, coisa igual a mostrar um pedaço de kryptonita a Clark Kent e perguntar “és servido?”.
Não posso criticar a minha noiva por ter os gostos que tem, era o que faltava!, mas vejo tempos difíceis no horizonte. Para já tenho um tachinho de favas a acenar-me cada vez que passo na cozinha. Metem-se comigo, as putas, sabendo que não as gramo nem cobertas de ouro mas estão de costas largas porque gozam da predileção da dona da casa. Não as posso tocar, não as devo mandar para o lixo, resta-me aceitar mais este costume doido do meu país adotivo, esperar que (mais este) frenesim polaco passe até que voltemos à paz dos tempos das comidas convencionais. Entretanto vou cruzando os dedos para que não sinta aromas feios, tanto da cozedura das favas como em resultado da combustão das mesmas.
2 comentários:
Eu tb nascido nos inicios da decada de 70 tambem detesto favas. A nao ser que sejam fritas. Caramba... nem as posso ver nem com toucinho nem com nada.
Quando tinha de comer essa coisa... tinha de as comer primeiro e depois la ia o toucinho para ver se nao arrotava a favas... epa detestava aquilo.
Encarnado doente nao e defeito e virtude :)
Favas e iscas... também concordo (e eu que sou boa boca!). Curiosamente, fui aprendendo a gostar de favas, também tidas como pitéu por quase todos à minha volta. Gosto do refugado, das carnes e enchidos e opto por acompanhar aquilo com duas valentes colheres de arroz branco e as ditas favas, como só uma ou duas. A coisa passa. Já o fígado é mesmo eterno non grato (só gosto do cheiro da fritura e de lá molhar o pãozinho).
E já agora, também dou a minha achega: Encarnado é lindo :-)
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