Pelos vistos parámos junto ao centro histórico de Lviv pois do ponto onde estacionámos até à praça da cidade velha foram dois minutos a pé e logo encontrámos um restaurante com ar catita para comermos e bebermos alguma coisa enquanto assistíamos ao Dinamarca - Holanda. A senhora do restaurante, de sorriso nervoso mas amigável, arruma as mesas para sentar as nove pessoas que acabaram de chegar. Eu tento o polaco com o empregado de mesa, um jovem louro e magro demasiado agitado para a freguesia que havia em casa. Ele recusa o polaco com as mãos e diz "inglish, inglish". "All right", respondo surpreendido e peço "can we have seen beers, please?". Ele diz que sim, eu sento-me para ver o jogo, o Fava grita "Beer! Beer!", não deve ter percebido que eu já tinha feito o pedido, as ementas são servidas, tudo em alfabeto cirílico com descrições em inglês nem sempre esclarecedoras. Quase todos escolheram um "piece of the best part of beef", eu pedi uma "Chicken Kyïv" porque em Roma gosto de ser romano. "Bom, e essas cervejas?" pergunta o Xavier espantado.
Passaram-se quase 10 minutos e nada de cerveja, faço sinal ao empregado que responde com um salto de trás do balcão à moda de Shaolin, os olhos azuis quase a saltarem da cara, cada vez mais agitado e tenso. "Beer? Ok, how many?" Começo então a sentir que está algo errado neste filme, já lhe tinha dito que eram sete. Repito o pedido e ele desaparece na copa embora a torneira da cerveja estivesse perto da nossa mesa, no balcão, por detrás do qual ele salta que sem um samurai quando é chamado. Mais 10 minutos, o Fava está pior que estragado e pede uma coisa na lista que ele não sabe o que é, chegam fatias de enchidos, salpicões e linguiças, era o pedido do Fava que chegou rapidamente, de cervejas nem sombra. De repente vejo o empregado outra vez atrás do balcão a olhar para nós como um rato olha nervosamente para os bigodes do gato que espreitam pela toca. "Excuse me", pedi. "What about our beers?" O rapaz dá um pique na minha direção, suava e tremia, pensei que ele tivesse tomado speeds ou que andasse a nadar em estimulantes. "Beer? Ok, how many?" Aqui o Dani levantou-se para fumar, o Giga pregou um barrano de palma da mão no tampo da mesa que meteu a clientela em sentido e abalou porta fora praguejando. Eu saio também para acalmar os rapazes, o Giga preocupadíssimo porque só falta hora e meia para o jogo, o Pimpão com uma calma olímpica junta-se ao grupo depois de ter perguntado aos polícias como ir ter ao estádio, tem boas notícias, diz que autocarro para o estádio é a 400m, o percurso para a Arena Lviv dura não mais que 20 minutos ... e eis que se junta ao nosso grupo o nosso querido empregado, uma vara loura tremendo como gelatina, a pedir fogo. O Giga quase que o engole mas ele é rápido a dizer "one minute, prosto (simples)". Realmente, assim que o rapaz se calou as vozes portuguesas anunciaram o jantar. Correram as reses para a mesa, devoraram (é esse o termo) as rações que lhes foram servidas e engoliram a cerveja morna que finalmente chegou à mesa. A conta pedida imediatamente para evitar mais demoras e o Pimpão, a calma enervante, o rosto inexpressivo, lança a pergunta “Então mas eu não posso beber um cafezinho?”
Depois de lhe termos prometido porrada, de lhe ameaçarmos meter os dentes para dentro e de responder ao “thank you, come back soon!” da empregada com um “I don’t think so” entre dentes, arrancámos para a praça dos autocarros, um largo completamente desorganizado onde as pessoas sobem e descem dos autocarros sem que se veja uma paragem no horizonte, as camionetas fazem manobras de marcha-atrás no meio do trânsito, os carros que se desviam dos autocarros galgam passeios e mandam os peões borda fora, um campo minado. A chuva caía, tépida e pegajosa, misturava-se com o suor da corrida e do almoço comido à pressa, arfamos ao entrar no autocarro, apertados como conservas. Começo os cânticos com o Giga, parceiro de gritarias adolescentes de Liceu e Alvalade, contagiamos os tugas desconhecidos e alguns alemães tiram fotos. A viagem para o estádio dura os tais 20 minutos feitos sempre com palmas e gritos, provocações amigáveis e ambiente de festa. O autocarro parou num campo de nada, um pântano onde se via um trilho de calçada pouco largo, insuficiente para dar vazão ao caudal de espetadores. Percebemos que tínhamos ficado a um ou dois quilómetros do estádio, ainda tínhamos de andar por aquele caminhito e gramar com pessoas de marcha mais lenta ou, como alternativa, perder o amor aos calcantes e percorrer a distância de patas na lama. Foi assim que chegámos às portas do estádio após uma dúzia de minutos, um pouco na lamoja e outro no cimento. Ouvíamos os clamores das claques, a música do estádio, o speaker em português, duas ucranianas tiram fotos junto do estádio, o Dani colou-se na foto e elas encantadas, logo o resto da alcateia também se juntou para a posteridade, elas coradas, desorientadas com a concentração de latinos por metro quadrado. De repente um telefonema, o Xavier com uma tragédia: “O Pimpão perdeu o passaporte e o bilhete!” Eu já não tinha bateria, o Giga tinha o telefone dele desligado e já ia a 100 à hora disparado para a bancada, o Rui nada dizia, o Fava encolhia os ombros e o Dani estava mais concentrado nas ucranianas. Ninguém ficou surpreendido com a notícia, o Pimpão é um cabeça de vento e já tinha perdido o telemóvel em Varsóvia, adiante que vai jogar Portugal e o Pimpão que volte ao restaurante. Temos pena.
O jogo correu como correu, onze contra onze e no final ganhou a Alemanha. No fim, à saída do estádio, encontrámo-nos com o Pimpão que revelou não ter encontrado o restaurante, um doidivanas destes que não deu com o restaurante que fica em linha reta a partir da praça de autocarros. Voltámos, suados, afónicos e frustrados com a derrota injusta. Percorremos os caminhos até ao malfadado restaurante e lá estavam passaporte e bilhete, o empregado inquieto talvez pensasse que nos ia ter de aturar outra vez, fugiu para trás do balcão por onde espreitava como um coelhinho assustado. Eu fui para a praça do mercado comer um hambúrguer e ver a festa que os alemães estavam a fazer, à nossa custa, cabrões! Uma ucraniana acerca-se de mim e pergunta: “Sorry, you from Portugal?” Apeteceu-me responder mal e dizer que era das Ilhas Comores ou do Nepal mas ela estava tão sorridente e emanava tanta simpatia que não consegui fazê-lo e disse a verdade. Ela quase que explode de alegria e excitação e dispara uma série de perguntas, se gosto de Lviv, como é que eu estou a ver a organização ucraniana do certame, o que foi que eu visitei até agora, impressões, enfim. O namorado (ou amigo dela) quase que me obriga a beber uma vodca com ele, eu delicadamente recuso com “spasibo” consecutivos porque ainda tenho de conduzir de volta para Cracóvia, a minha nova amiga de Lviv levanta-lhe a voz e ele desiste. Ela continua com perguntas e eu respondo à medida que a paciência permite, sinto-me como uma ave rara, um animal exótico. Um ucraniano que fala espanhol e polaco oferece dormida num apartamento recém-renovado, falamos em polaco e ele surpreende-se com o meu nível, dá-me murros de contente “kurwa, ja ty dobrzy mówisz po polsku, ja jebie!” e prega-me outra punhada, estranha forma esta de se mostrar amistoso. Passa o Tiago Teejay, o manhoso aproveitou que ia ver o jogo e marcou uma atuação numa discoteca da cidade. Bem trabalhado.
Os munines comem os hambúrgueres de forma pastosa, o ucraniano continua a dar-me socos, a miúda de Lviv metralha perguntas, os alemães cantam cada vez mais alto, a chuva volta.
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