A estrada para Lviv é um consolo, uma via rápida larga e lisa, sem buracos nem remendos, um bálsamo para a suspensão do carro e para as costas dos passageiros. 70km naquelas condições fazem-se bem, até se pode puxar um bocadinho pelos cavalos para compensar o atraso na Polónia e na fronteira. O caminho é feito por prados delimitados por árvores longínquas e riachos tranquilos, viaja-se com tranquilidade e pela primeira vez desde há muitas horas os munines sentem-se mais calmos, abrem as janelas para deixar o ar fresco lavar o ambiente, não resmungam e até gozam a paisagem eslava, cenário que não existe no Algarve. "Já imaginaram que daqui a quatro meses isto vai estar com um palmo de neve?" atiro eu para quebrar o gelo. Todos concordam a meia voz, estão mais calmos mas não totalmente, precisamos acelerar para evitar percalços.
Passamos por uma aldeia, pobre como todas aquelas pelas quais passaremos no caminho. Crianças de 5, 6, 8 anos estão à beira da estrada e acenam bandeirinhas da Ucrânia gritando à nossa passagem, nós respondemos buzinando e mostrando cachecóis e bandeiras de Portugal, bonito de se ver. Outra aldeia e mais crianças, mais bandeirinhas, cumprimentos e acenos, buzinadelas e gritos por Portugal. Um velhinho está entre as criancinhas no passeio da estrada e ergue dois braços unidos em cima da cabeça pelas mãos, vê-lo trouxe-me uma ideia terrível, como se ele vitoriasse e agradecesse a nossa chegada, como se nós o viéssemos libertar, como se lhe trouxéssemos esperança. Passa um senhor numa bicicleta ferrugenta, roupas modestas mas a mesma simpatia no aceno e no sorriso. Os muninos apaudem divertidos, eu buzino e tento vislumbrar o horror da história recente nos gestos desta gente, pessoas humildes mas ricas de simpatia e hospitalidade, recebem o turista com prazer, não parecem desconfiados nem reservados, pelo contrário. As aldeias sucedem-se e os nomes estranhos também, coisas escritas em cirílico como Новояворіськ, Івано-Франкове, Підрясне e por fim Львів – Lviv
Chegamos a Lviv, aqui moram mais de 750.000 pessoas e dizem dela que é a melhor cidade ucraniana para se viver, segundo uma publicação da Focus de 2009. Considera-se Lviv a cidade mais bonita da Ucrânia. Se é verdade, então eu não quero conhecer as outras. A entrada ocidental de Lviv pela M10, a via que nos trouxe, dá-nos a conhecer uma cidade envelhecida, degradada, triste e depressiva. Prédios de cinco e seis andares com reboco a cair cujos tijolos estão à vista e à disposição das alterações climáticas, as varandas perderam parte do cimento e ficam com as grades à mostra como gengivas atacadas de escorbuto, mato a crescer no passeio, uma tristeza. A rua Shevchenka, apelido célebre neste país, é uma artéria estragada pelo abandono dos responsáveis e governantes, pela falta de alocação de verbas para a renovação das rodovias, dá uma péssima imagem ao visitante. Piso irregular de paralelipípedos que castigam a suspensão do A180, piso que sobe no carril do elétrico e desce no restante da traça, eu sem saber por onde conduzir e o Fava que manda “vai sempre em frente, puto. Sempre em frente”, ele promovido a navegador uma vez que o meu GPS só me ajudou até à fronteira. O carro pulava nervosamente naquele trilho de bestas, roçava, raspava e chorava, eu chorava com ele, cada golpe no carril, cada depressão no terreno, cada murro na suspensão eram também sentidos por mim. O Fava grita “vira agora à esquerda”, eu abrando e pergunto-lhe “mas como?”
O entroncamento não tinha semáforos, não tinha faixas pintadas no chão, circulavam quantos carros coubessem mais os autocarros e as linhas se elétrico que por ali se cruzavam. Nasciam automóveis de todas as direções e sem a mínima noção de ordem ou regra, as pessoas toureavam os elétricos para passarem para o passeio oposto. Quem já conduziu no Arco do Triunfo em Paris que eleve a sensação ao cubo. Buzinavam-me para que avançasse mas eu não via frestas, um motorista menos paciente ultrapassa-me pelo lado onde eu pensava que estava um autocarro e não coubesse mais nada. Fecho os olhos, mordos os lábios, murmuro um “perdoa-me, cavalinho” e enfio-me no redemoinho de carris, pedras e trânsito. O carro salta, guincha, escoiceia mas sobrevive à tortura, nem um risco (por fora porque por baixo devia estar em carne viva). No semáforo seguinte encontrámos o bar onde supostamente estava malta de Faro e por milagre, dez metros à frente, um lugar para estacionar certamente criado pelos deuses do automóvel que tiveram misericórdia do meu carrinho e guardaram aquele benzido espaço para que ele descansasse e lambesse as feridas.
Saímos do carro, o ar estava húmido e doce. O Dani já tinha estacionado mais atrás, eu olho para o carro e peço-lhe desculpas, ele não me quer ouvir, diz para eu me ir embora. Assim faço. Temos duas horas para o jogo começar e ainda temos de arranjar um lugar para comer.
No bar já não há ninguém de Faro, só alemães. Ao virar a esquina olho de novo para o meu carro e quase que jurava que o ouvi soluçar.
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