sexta-feira, 17 de maio de 2013

Quinta à tarde com um pardalinho

22º em Varsóvia é o equivalente a 32º em Faro por vários motivos. Porque o ar é seco e não se movimenta, porque não há brisa marítima que sopre, porque não existe uma praia na qual se possa refugiar. Basta o mercúrio pular ligeiramente acima dos 20º para os polacos se espojarem na relva dos parques como lagartixas que aceitam os tímidos raios de sol primaveril, calorzinho prazeiroso mas insuficiente para animar este algarvio a apanhar esses banhos de claridade que não bronzeiam nem aquecem verdadeiramente, quando muito esticar-me em espreguiçadeiras que alguns restaurantes dispõem para os seus clientes mandriarem em conforto. Foi o que fiz hoje aproveitando um buraco de quatro horas no dia de trabalho.

aqui tinha mencionado um belo lugar que entretanto se tornou num dos meus preferidos, o Cafe Kafka, lugar de paragem obrigatória pelo menos uma vez por semana para aconchegar o estômago com as suas massas e lavar as vistas com a sua freguesia. Graças ao quente abraço do sol, muitas polaquinhas já escolhem arregaçadas saias como toilette e isso proporciona uma agradável paisagem de pernas de leite a cortar o verde do parque Kazimierzowski, alvas ninfetas discretamente espiadas por cima das páginas dum companheiro de digestão. É notável o poder de renascimento que o sol confere à cidade e às pessoas, todas as roupas sombrias e tristes são trocadas por tonalidades garridas e berrantes, as sweat-shirts dão lugar a blazers de linho, as botas de trekking são substituídas por sapatos de pano, os gorilas carecas de lata de cerveja em riste saem de cena para que hipsters viciados em sodas e gadgets ocupem os seus lugares. Entre eles, rindo despreocupadas e descarregando quantidades incalculáveis de sensualidade em cada cruzar de perna estão elas, pueris e inocentes no seu ar tranquilo, venenosas e penetrantes quando tocam no nosso olhar, uma mistura milimetricamente equilibrada de inocência e volúpia que nenhum ser com um pingo de testosterona a correr-lhe no sistema consegue ignorar. As t-shirts de golas redondas e alargadas permitem a visão (ou a previsão) de níveas maravilhas escondidas durante meses, sufocadas pelas rigorosas lãs e fazendas mas que agora pedem ar fresco e liberdade, quase como se quisessem ter o papel de maças na mão de malabaristas, serem atiradas ao ar e recolhidas em permanente balanço e desatino. Os vestidos de linho compõem quadris geometricamente desenhados onde nenhum centímetro está em demasia, caem com a formosura e graciosidade duma leve capa de água colorida e permitem idear imaculadas nádegas cor de algodão que combinam em excelência com os olhos celestes que lhes acentua a brancura da pele e com o áureo cabelo que remata tão bela criatura. Um colírio, um bálsamo, uma sinfonia, uma obra-prima, um prazer imensurável. Retomo a leitura aconselhada por uma amiga com olho de lince nestas coisas dos escritores, precisamente para não me perder (mais) em pensamentos indecentes e inconsequentes, engulo a última garfada de esparguete procurando não chupar o fio para evitar alegorias, volto-me para a fatia de bolo de amoras e natas e eis que noto a visita inesperada dum ladrão penado, um pardalinho que terá aterrado na mesa, saltitado furtivamente para o pires e enquanto eu me esmifrava a cocar as miúdas o mariola banqueteava-se com a minha sobremesa debicando sucessivamente o chantili até ficar com o bico todo branco, uma espécie de palhaço alado engraçadíssimo que atraiu a atenção de duas formosas donzelas que entretanto se sentaram na mesa da minha direita.

- Oh, que pássaro tão giro!

(pássaro em uma gíria polaca para pénis. Eu levo a limonada à boca e respondo com a pouca calma que os nervos permitiam)

- É. Já viu? Não tem vergonha nenhuma.

('sai ao dono', pensei em dizer mas nem o pássaro era meu nem era do meu pássaro que queria falar. Dei mais um golo na limonada para evitar dizer disparates e rezei para que elas não se levantassem e viessem ver o meu pássaro. Quero dizer, o pássaro que estava na minha mesa)

- Os passarinhos são tão divertidos, eu gosto muito de pássaros. - diz uma delas.

(engulo o resto da limonada de um trago, enxoto o pardal para que pudesse finalmente comer o bolo que entretanto já tinha sido ratado pela ave em quase um quarto. Admirável a capacidade que o bicho revelou em comer bolo.)

- Pois é, em chegando a primavera os passarinhos parece que ganham nova vida.

(atiro com quase o bolo todo pela goela abaixo para selar o chorrilho de baboseiras que me saíam da boca, meto o livro debaixo do braço e abalo desengonçadamente dali antes que dissesse algo ainda mais comprometedor.)

- Do widzenia! - despeço-me de forma atrapalhada cuspindo pedaços de amora. Subo a rua Obożna
para voltar ao escritório da Universidade e começo a limpar a transpiração procurando apagar o episódio da mente e tentando focar-me no trabalho que me esperava. No passeio, um corvo esgravata o cadáver fresco duma gralha, tem o bico cheio de penugem. Uma imagem que eu não esperava ver nunca, sempre tive os corvos e as gralhas como primos de inverno varsoviano, parentes iguais no grau de feiura e mau agouro e agora ali estava um a esventrar o outro num acto de tal crueldade que parecia posto lá de propósito por Varsóvia para me avisar que eu não me esquecesse da outra face da Cidade Capital, que dá com uma mão mas que tira com outra.

Eu agora atravesso uma fase mais budista, de maior introspeção e reavaliação de muitas coisas. Este talvez tenha sido este o sinal que precisava receber para sentir que é aqui que eu devo estar... e ficar.

2 comentários:

Montenegro disse...

Algumas notas que retiro deste magnifico texto:

- muitas letras para definir "rebarbado and proud of it", mas com muito, muito nível. é como eu, mas com menos nível;
- com uma descrição destas da fauna circundante, se eu fosse à Polónia não demorava mais de 2 semaninhas a ficar definitivamente louco;
- e fotos dessas gajas que descreves? isso é que era de valor. :)


"naicinho"

PM Misha disse...

- o rebarbo é mais que muito, é sim senhor, mas há que ter nível nestas coisas das fases de carência para não parecer que mendigamos vulva;
- eu levei 3 anos, mais de mil dias a deixar de ser (definitivamente) louco;
- é como o golo do rui esteves em loulé ao vítor baía: quem viu, viu e quem não viu, visse.

abraço