sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Recordar é Viver – Obrigado, Tio

Há quem tenha pai, há quem tenha apenas progenitor.

Dois homens, um nos 20 anos e outro nos 70, e duas mulheres, uma nos 40 e outra nos 60, meteram-se dentro do carro e saíram de Faro a caminho de Famalicão. Chegaram muito tarde mas a tempo de irem a uma tasquinha petiscar rojões acompanhados de algumas malgas de vinho verde, tudo por sugestão do homem mais velho. O rapaz mais novo, que tinha feito os 700 e tal km de seguida, ficou-se pela primeira malga de vinho e foi incapaz de beber mais apesar do homem mais velho insistir. Foram dormir, todos bem comidos e bem bebidos.

 

Na manhã seguinte bem cedinho, o homem mais velho bate à porta do rapaz mais novo que ainda arrotava a alho e a vinho. “Vamos, tá a levantar que hoje temos muitos quilómetros para fazer!”. A contragosto o rapaz mais novo enfiou-se debaixo do duche e lavou a ressaca enquanto no hall do hotel o homem mais velho lia jornais para matar o tempo e a impaciência, mais fino que o azeite apesar de ter consumido alguns três tupperwares de vinho verde na noite passada. “Até que enfim que chegaste! – Disse ele – Hoje vamos comer lampreia a Monção”. O rapaz mais novo sentou-se ao volante do Mercedes e começa os primeiros quilómetros do percurso por intuição, tateando os comandos do automóvel e lutando contra o torpor do vinho da noite anterior.

A terra de Deu-La-Deu proporcionou-lhes uma excelente Lampreia à Bordalesa, iguaria que só alguns apreciam, mais uma vez bem regada com Alvarinho local de trás da orelha. Após o repasto, Melgaço e a curiosidade de ir até S. Gregório, a localidade mais setentrional de Portugal uma vez que todo aquele carro era da cidade mais meridional do país. Em S. Gregório surgiu a ordem para parar a meio-caminho, onde nada havia senão um punhado de casas atiradas contra a encosta dum monte. Numa dessas casas o homem mais velho entrou, sentou-se e ordenou malgas de vinho verde para a sua tropa, um vinho forte, doce, viciante e perigoso para quem conduz. O rapaz não conseguiu terminar a sua porção, cedeu-a à mulher mais nova enquanto o homem mais velho ria da sua fraqueza e pedia mais vinho. Regresso a Famalicão ao fim da tarde e à noite mais uma incursão por casas sinistras de portas altas e abertas só para quem soubesse a senha mas onde o homem velho entrava com facilidade, acomodava-se e iniciava mais um assalto, doses e mais doses daquele delicioso vinho minhoto que suavemente embriagava os dois enquanto empurrava pequenos nacos de carne de porco frita. Malgas onde muitos comem sopa eram trazidas para a mesa, malgas onde o vinho não cabia e se entornava, malgas que giravam a velocidade estonteante. “Saber como é para contar como foi”.

De manhã, ainda mais cedo do que na manhã anterior, outra vez o punho na porta, o aviso de que era tarde, a ressaca gigante, o volante tirano, o riso do homem velho sentado nos sofás do hotel, fresco como um pero, como se tivesse dormido numa incubadora de Guronsan. “Alvorada! Vamos a Mirandela, temos lá uma posta de carne barrosã à nossa espera.” Foi um festim, um bife com três dedos de altura e o vinho divinal que rematava a refeição. A seguir Torre de Moncorvo, Guarda, Castelo Branco para pernoitar, Portalegre, descendo por Évora, Beja, Mértola, Odeleite porque ainda havia tempo para correr o Guadiana, e por fim o Algarve. 1000 e tal km em 4 dias. O homem mais velho sempre fresco, o rapaz mais novo todo cozido.

Este é apenas um episódio dos muitos vividos por mim junto com o meu tio (neste caso mais a minha mãe e a minha tia), um homem com uma incrível capacidade de amar e dar das suas coisas aos seus. Recordo a viagem a Nápoles para ver o Sporting jogar contra Maradona onde sem falar italiano ele conseguiu descobrir uma farmácia e trazer-me os remédios necessários para combater a constipação que lá apanhei, os passeios no Ludo onde ele me ensinou a usar um relógio de pulso como bússola, o meu primero carro que ele me vendeu a preço de sobrinho, o barco a remos onde ele me punha e que me levava à outra margem da Ria para apanharmos lingueirão. A minha gente conhece a relação que tinha com o meu tio João, as lições de vida que aprendi com ele e o inestimável apoio que sempre me prestou. Agora que ele parte, ainda não sei como reagir mas não me apetece chorar. Apetece-me, se calhar, sentar-me à mesa dele na praia e partir um queijinho de Azeitão, abrir aquele Barca Velha de 1985 que lhe ofereci num aniversário e falar do Sporting, de farmácia, de comida, do Farense, de todas aquelas coisas boas que nós tínhamos em comum e que lhe sabia bem discutir. Se ele nunca causou tristeza aos outros, se ele nunca reprovou os outros, se ele nunca prejudicou ou outros sinto que não me devo sentir triste por ele mas celebrá-lo, homenageá-lo e erguer a minha taça à sua memória, um ser humano do tamanho do mundo que me irá fazer falta como a roupa que vestimos todos os dias. Outro terço da minha família que perdi, a rede do trapezista que se foi.

Tio, bem sei que tinhas o Caracol, o Brito, o tio Jorge Oliveira, o Balela, o Vasquinho, o Joinha e toda essa tropa à tua espera. Bem sei que todos os caçadores, pescadores e outros mentirosos estavam à tua espera. Bem sei que os teus irmãos também estavam à tua espera. Mas… estavas assim com tanta pressa?

9 comentários:

Ricardo disse...

Fiquei mesmo comovido. Lamento muito Nuno. Prestas-lhe uma linda homenagem falada com o coração. Ab.

PM Misha disse...

só podia ser assim, ricardo.
abraço e obrigado.

Ryan disse...

A história é feita de homens e mulheres que levam um pedaço de nós consigo e deixam po cá saudades imensas. As palavras que usas para descrever esse homem impossível de dissociar da tua história são muito inspiradoras e dá para entender o que sentes. Um grande abraço para ti neste momento e muita força.

Rui Correia disse...

Eh camano! Agora é que percebi tudo. Gostava de não te ter visto na 6a feira em Faro! Seria bom sinal! O Tio andaria aí pras curvas. Lamento imenso Nuno, o meu sentido pesar.
A vida prega-nos muitas partidas. 1 abraço, e que da proxima vez que venhas a faro, que seja por um bom motivo.
Força aí Munino!

PM Misha disse...

Obrigado, companheiros :)

Luís Fonseca disse...

Todos nós temos/tivemos um tio assim merecedores de uma sentida e bela homenagem como esta.
Os sentidos e atrasados pêsames

Unknown disse...

As minhas condolencias e segue em frente a vida continua.
Abraco.

Rita disse...

Ele já foi, mas deixou por cá um bom pedaço dele contigo. Que sei que não vais perder oportunidade de partilhar com os teus amigos. Todos sabemos a relação que tinhas com "O Tio"...e mesmo nestas situações, é tão bom perceber como estas pessoas nos marcaram e orientaram. As pessoas realmente importantes para nós nunca partem!
Beijúúúúúúú

PM Misha disse...

obrigado a todos, muito me agradaram as vossas palavras q:)