Por intermédio de uma
amiga conheci o Paweł, um rapaz de idade próxima dos dezasseis anos
oriundo de perto de Olsztyn, a terra dos lagos, no nordeste da
Polónia. Deu-me a ideia dum rapaz abatido, confortado com a vida que
tem, sem grandes planos para o futuro nem aparente vontade em
fazê-los mesmo que, como qualquer um de nós, desconhecesse se tem
mais um ano de vida pela frente, mais dez, mais trinta ou mais
sessenta. O Paweł tem um sorriso largo mas que não me pareceu
franco, foi educado quando nos cumprimentou (a mim e à minha amiga)
porém com ar de quem assim foi ensinado, a cumprimentar e a falar
bem às pessoas mesmo se não tivesse vontade nem interesse. O pai do
Paweł veio receber-nos muito contente por termos vindo, explicou
muitas coisas sobre a família e a sua história, abria os braços
para frisar a ideia e dar detalhe à narrativa. O Paweł não parecia
impressionado com a lenga-lenga, até tinha aspeto de estar
incomodado com aquilo tudo, com tanto pormenor, como se a sua
privacidade estivesse a ser devassada pelo pai que contava a vida
toda a estranhos, virava a cabeça ou sorria educadamente para não
nos mandar à fava. Brilhavam-lhe os olhos quando falava de
automóveis, de mecânica, do sonho de ter uma garagem própria e
arranjar motores e suspensões. O pai reparava no desconforto do
filho mas continuava a historiar, hesitava nos momentos mais
difíceis, escolhia bem as palavras apesar de ser uma pessoa de
formação académica modesta, escapava-se-lhe um impropério quando
mencionava aspetos que ele considerava mais revoltantes mas
rapidamente emendava a mão, pedia desculpa meio envergonhado e
retomava o raciocínio procurando episódios mais alegres para
aliviar o ambiente.
O Paweł é um doente
oncológico, tem uma perna amputada, um cancro que já está
localizado nos pulmões e tem metásteses em cada centímetro cúbico
do corpo, está por semanas ou meses. Este rapaz de dezasseis anos
nunca mais jogará futebol com os amigos da Mazúria, nunca limpará
as mãos em desperdício depois de reparar um amortecedor, nunca
sentirá aquele mel quente que nos invade quando se faz amor com uma
mulher pela primeira vez, nunca terá uma moca daquelas marafadas
depois dum charro, não lhe será dada a oportunidade de fazer merda
e aprender com os erros, não lhe foi dado o famigerado 'livre arbítrio' que os católicos tanto gostam de mencionar como razão
para os atos irracionais do Homem. Nada. Ao Paweł não lhe foi dado
nada, foi-lhe arrancada uma perna, o cabelo, as ilusões, os sonhos,
a inocência. O Paweł tem uma agulha de soro espetada no abdómen e
uma espada cravada no coração, sabe que está a morrer mais
depressa que os outros meninos da idade dele mas nem tem consciência
que nunca mais voltará à sua casa, nunca mais brincará no seu
quarto, nunca mais dormirá na sua cama.
Discutem-se penáltis e
foras de jogo, lamenta-se que o Philip Seymour Hoffman tenha morrido
tão novinho, coitado, fazem-se contas ao
orçamento para pagar os luxos que são a internet, o telemóvel, o
seguro do carro, umas calças de ganga novas, um blusão para a neve, lamenta-se chorosamente que ele é insensível e não lhe dá atenção ou que ela é a rainha do drama e incapaz de pensar com lógica.
Enquanto isso o Paweł definha.
Nunca o cliché 'pôr
as coisas em perspetiva' foi tão bem aplicado como quando conheci o
Paweł, um rapaz que provavelmente não verá as flores frescas da
primavera deste ano, não gozará a sombra duma árvore este verão, não terá mais nenhum Natal.
Precisamos todos de
ganhar tino. A vida são dois dias e hoje já conta.
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