Diz o povo professor que ‘a necessidade aguça o engenho’. Não sei se por uma questão de necessidade, parece-me ainda não ser o caso, se por brio, uma das coisas que aprendei a fazer no distante ano 2000 (Beto Acosta, Beto Acosta, és o nosso matador. Matadooooor! Matadooooor!) quando me mudei para a minha casa atingindo o sonho de morar sozinho foi cerzir peúgos. Esse engenho adveio do enorme prazer que eu sempre tive em andar descalço ou de peúgos em casa, coisa severamente verberada pela minha mãe enquanto estive aninhado sob a telha dela, provavelmente porque ignorava tal prazer por, sendo mulher e senhora, não lhe ficar bem patinhar as assoalhadas de joanete ao léu. Ela justificava a sua reprovação com um argumento plausível, ‘não me andes descalço que ficas com os peúgos todos encardidos’ mas só até certo ponto porque quando eu andava de pé descalço eram só os pés que ficavam encardidos, ou no dizer farense da minha mãe ‘cheios de garro’, e esse era um problema que só a mim dizia respeito. Não obstante ser dela o esforço de passar lixívia pelas célebres meias das raquetes até que o sujo saísse, não era ela quem me vinha esfregar os artelhos para remover a nhaca que ali se colasse em virtude de tardes de bola na Escola do Carmo ao calor abafado do Algarve, nem era essa uma parte da minha anatomia que eu exibisse despudoradamente para que as vizinhas soubessem que o filho da Lili era um porcalhão e mais porca era ela que tinha um filho assim tão labregozinho. Eram incoerências em que os adultos de vez em quando incorriam no seu processo de educação de filhos, eu aceitava a regra idiota na medida em que isso não me fazia pobre nem doente mas sempre tive para mim que no dia em que eu tivesse a minha própria casa andaria nela descalço até me descolar a pele da planta do pé, ganhar panarícios ou criar esporões.
Chegou a era tão ansiada da emancipação doméstica e a minha emigração para Santo António do Alto originou novas regras, andar descalço até de inverno, muitas vezes descalço até ao pescoço gozando o chão de corticite dos meus quartos sem que ninguém me apontasse dedos ou ralhasse comigo. Percebi então que esse prazer tinha um preço, buracos que apareciam em posições estratégicas dos peúgos: Calcanhares, o dedão, a trivela. Os meus peúgos preferidos viam-se progressivamente desgastados, coçados, transformados em coleções de fibras têxteis avulsas sem trambelho nenhum. Rapidamente conheci o fundo da gaveta das meias, sinal de que o número de indivíduos residentes naquele habitat estava a baixar drasticamente, problema aborrecido porque nunca fui homem de ganhar o suficiente para comprar a quantidade e ter a variedade de peúgos com que sempre sonhei. Fiquei a saber que tinha de os restaurar, para isso muni-me de linha e agulha e fiz-me à vida porque um homem enrascado é pior que uma mulher grávida. Desde então, mal ou bem tenho cosido muitos pares de meias e dado vidas extra a muitos peúgos que em condições diferentes tinham facilmente ido parar ao caixote do lixo.
Quando vim para a Polónia trouxe o meu estojo de costura, não fosse o diabo tecê-las e eu não saber como se diz dedal nesta Babilónia. Entretanto as agulhas perderam-se por artes mágicas, não sem que antes eu tivesse aprendido como se cosem meias, o que me animou a procurar os ditos instrumentos de costura para poder dar conta da roupa dos calcantes. No cartucho das agulha que comprei na semana passada saiu-me este aparelho do lado esquerdo, para que raios serve?
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