Entro numa carruagem de metropolitano ainda a carregar o sono causado pela insuficiente noite anterior resultante duma maratona de verbos e pronomes de caneta vermelha em riste. É um milagre como não tenho olheiras que me delatem a sonolência, a preguiça esta manhã foi tanta que nem pus o gorro que me protege a moleirinha destes ventos frios que têm feito nos últimos dias, mas como achei passável o que vi no espelho do elevador não entrei em pânico, aceitei o ar dormente que tinha para apresentar à cidade e abalei para a luta. Espio um lugar, uma clareira ignorada pela multidão e encolho-me entre senhoras de casacos grossos e homens duas ou três vezes mais largos do que eu para atingir o poleiro, ainda penso que se o lugar está vago é porque está sujo ou amaldiçoado, teria alguém tido um ataque cardíaco naquele assento?, alguma grávida a quem lhe rebentaram as águas em pleno subsolo varsoviano?, porque estava aquele lugarinho ali a dar sopa como se tivesse um follow-spot a apontar para ele? Não me ralei com a resposta, lá me espremi e abanquei, puxei dos Capitães de Areia, obra-prima de um dos meus autores favoritos e enfio o nariz das páginas que relatam as peripécias de Pedro Bala, do Gato, Professor, Sem-Pernas e dos outros meninos protagonistas da história. Sempre um primor, as linhas de “Seu Jorge”.
Vai a composição a meio da viagem e cada vez mais gente se cutuca num apinhado vagão, eu feito sagorro não estou interessado nas guerras territoriais das pessoas. Enervam-me aqueles que entram e encostam-se logo a um dos lados lotando rapidamente os acessos em vez de se distribuirem pelos meios da carruagem onde geralmente há mais espaço e onde não precisamos de sentir a respiração dos outros no cogote, uma desnecessidade. Sigo alheio, mais um capítulo, mais uma estação até ao Centrum onde termino a leitura porque saio no poiso seguinte, levanto os olhos e estes chocam numas pernas altas, talhadas a escopro e plaina que sobem vertiginosamente até se fazerem nádegas sólidas e esféricas, fixamente suportadas pela saia de anil onde a vista pára e demora-se na apreciação. Invade-me um pensamento egoísta, o de ficar ali a velejar naquelas pernas rio acima e rio abaixo, ora subindo até à nascente ora em rápido até àquela impressionante foz de sensualidade imaginando se, qual Nilo eslavo, também em (que) delta desaguarão todas aquelas carnes de perdição. Ou devo subir? Devo explorar o restante do território, sair do leito do rio e penetrar nos seus vales e montanhas? Mais meio minuto até à minha estação, meio minuto de contemplação, de rebuçado, de gozo e pasmo.
Chego à minha estação, dez minutos até começar a dar ao stick. Não resisto à tentação, levanto-me bruscamente e pego-lhe no antebraço, rodo-a para ficarmos cara a cara e pergunto-lhe:
- Como te chamas?
Ela vira-se surpresa, olha-me, analisa-me, baixa as pálpebras num movimento quase impercetível e responde-me em sussuro. Ela diz-me o seu nome, o único nome que uma mulher com aquelas qualidades podia ter:
- Chamo-me… Varsóvia.