No tempo em que o jornal Record era trissemanário e A Bola era quadrissemanário, o debate do futebol não atingia os níveis de ordinarice e chinfrim do presente. A Bola sempre foi reconhecida como publicação de simpatia marcadamente benfiquista, reputação consolidada pela presença de redatores como Alfredo Farinha ou Carlos Pinhão que apesar das suas públicas preferências clubísticas eram notáveis homens de letras, escreviam magistralmente quer fosse na defesa da sua dama (o clube da Luz), quer fosse fora do ambiente jornalístico. Conhecido como “A Bíblia” pela sua popularidade mas também pela qualidade dos seus artigos, muitos escritos pela notável pena dos jornalistas acima mencionados mas também com ilustres escritores como Homero Serpa ou Aurélio Márcio, era um jornal que ensinava os portugueses.
O Record começou como contrapeso ao jornal da Travessa da Queimada tendo tido o conhecido sportinguista Artur Agostinho como diretor nos anos 60 e 70 mas virou declaradamente para os “encarnados” nos anos 80 quando Rui Cartaxana foi nomeado diretor, iniciando uma “dinastia” benfiquista que se prolongou pelos pontificados de João Marcelino, José Manuel Delgado e João Querido Manha. Percebeu-se que a linha editorial deste jornal era diferente das antecessoras pois nas suas colunas não faltavam artigos ácidos de acusação a roçar o impropério virados para os rivais da Segunda Circular ou das Antas, uma prática que escalou e transformou-se em lamentáveis lavagens de roupa suja que nada dignificada a classe profissional nem os pergaminhos do jornal. Atingiu o cúmulo da vulgaridade ao ser adquirido pelo grupo Cofina, firma responsável por outro título hediondo da imprensa portuguesa – o Correio da Manhã.
Entretanto os jornais passam a ser publicados diariamente por via das necessidades de tesouraria, não há país desportivo suficiente para alimentar três grandes diários desportivos (o portista O Jogo passou a entrar nas contas como concorrente a Norte) mas há que vender e portanto há que encher as páginas com palavras cativantes. Os artigos de opinião começam a ser cada vez mais inflamados e os portugueses ficam cada vez mais intoxicados pelas mensagens de ataque, já não se defende apenas o clube antes se enxovalha o rival. A notícia, afinal o ingrediente essencial do jornal, cai para segundo plano, a crónica torna-se tendenciosa, o comentário parcial. A manchete tem uma só cor independentemente da relevância do facto, há um só credo, um só pensar, o resto é vulgarizado, até desprezado. Chega a internet e o leitor opta pelo conforto gratuito do computador portátil em vez de gastar €0.80 a sujar os dedos de tinta. Novo rombo nas contas dos jornais, despedimentos, profissionais das letras cada vez mais receosos dos seus futuros, o espectro do desemprego a pairar, o “temos de vender” que se calhar empurra o código deontológico para o fundo da gaveta se tal garantir o posto de trabalho. Por fim e em conformidade com as políticas adotadas e a matriz subserviente do tuga, vem a subjugação em prol das tiragens – transformar-se em órgão informativo oficioso dum clube.
Naturalmente que não se pode usar um jornal desportivo nacional como panfleto de propaganda ou manifesto clubístico, ao fim e ao cabo ainda há uns bons milhões de portugueses que não papam desse grupo, então a tática adotada foi: Dar relevo ao que vitoria o clube grande, enaltecer o que distingue, ignorar o que desvaloriza, branquear o que desprestigia. Inventam-se factos escudadas nas “fontes privilegiadas” e nas “informações recolhidas” em textos invariavelmente assinados de maneira conveniente pela “redação”, arquitetam-se novos deuses com dentes de leite e comemoram-se as suas transferências como de títulos arrecadados, festejam-se acordos de patrocínio (meros atos de gestão) como golos em finais europeias. Subtilmente a mensagem vai sendo passada, o que o clube grande faz é que importa, o que os outros fazem é inferior. Calendarizam-se entrevistas de fundo com o mesmo protagonista à imagem de um programa de atividades do clube – a manchete do dia de Ano Novo é mais certa do que a emissão do filme Sozinho Em Casa na noite de Natal. Cria-se uma onda de crença na irreversibilidade do processo que guindará ao triunfo final, o povo está na rua com galhardetes e cachecóis nos punhos em vez de cravos, os media (jornais, rádio, internet e inevitavelmente a televisão) afinam o bagaço ao som da mesma senha que é uma cartilha de em vez dum tema de Paulo de Carvalho, a doutrina é divulgada, a malta ensinada, a situação controlada. O futebol em Portugal é desporto de partido único.
Mesmo que a coisa corra mal, mesmo que surjam evidências que apontem a práticas ilegítimas do clube grande, está tudo tranquilo. Rapidamente a contra-informação trata de distrair o pessoal com areia antiga para os olhos, escusando-se a cumprir a sua missão de investigar e informar, antes assobiando para o lado como se o tema não fosse relevante. A imprensa vende a alma ao diabo por mais um punhado de euros, prostitui-se. O povo aparentemente bate palmas e pede bis. Pão e circo. Assim se ilude e estupidifica uma gente.